segunda-feira, 21 de maio de 2012

A Legitimidade dos Particulares nas Ações Administrativas Especiais


O Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA), define em termos diferentes a legitimidade das partes nas ações administrativas comuns e nas ações administrativas especiais.
Nas primeiras, o autor tem legitimidade ativa quando alegue ser parte na relação material controvertida – artigo 9.º/1 do CPTA – e o réu possui legitimidade passiva quando for a outra parte na mesma relação material, acrescentando ainda a lei “e quando for o caso disso, as pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do autor” – artigo 10.º/1 do CPTA.
Nas segundas, nas ações administrativas especiais, a legitimidade é definida diferentemente, consoante considerarmos as ações de impugnação de atos administrativos, as de condenação à prática de ato devido, as de impugnação de normas e as de declaração de ilegalidade por omissão de norma devida.
A legitimidade nas ações administrativas comuns é concebida em termos idênticos aos da legitimidade das partes no âmbito do processo civil. Refere, com efeito, o artigo 26.º/3 do Código do Processo Civil (CPC) que, “na falta de indicação em contrário, serão considerados titulares de interesses relevantes para o efeito da legitimidade, os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”.
Nas ações administrativas especiais de impugnação tem legitimidade para impugnar “quem alegue ser titular de um interesse direto e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo ato nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos” – artigo 55.º/1 alínea a) do CPTA – e as “pessoas coletivas públicas ou privadas, quanto aos direitos ou interesses que lhes cumpre defender” – artigo 55.º/1 alínea c) do CPTA – e a legitimidade passiva, para além da entidade autora do ato impugnado, “os contra-interessados a quem o provimento do processo impugnatório possa diretamente prejudicar ou que tenham legítimo interesse na manutenção do ato impugnado em função da relação material em causa ou dos documentos contidos no processo administrativo” – artigo 57.º  do CPTA.
Quanto às ações de condenação à prática de ato administrativo devido, tem legitimidade para pedir a condenação “quem alegue ser titular de um direito ou interesse legalmente protegido, dirigido à emissão do ato” e “as pessoas coletivas públicas ou privadas, em relação aos direitos e interesses que lhes cumpre defender” – artigo 68.º/1 do CPTA, respectivamente alíneas a) e b). Possuem legitimidade passiva, para além  da entidade responsável pela situação de omissão legal, “os contra-interessados a quem a prática do ato omitido possa diretamente prejudicar ou que tenham legítimo interesse em que ele não seja praticado e que possam ser identificados em função da relação material em causa ou dos documentos contidos no processo administrativo” – Artigo 68.º/2 do CPTA.
Quanto ao processo de impugnação das normas, a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, nos termos do artigo 73.º/1 do CPTA, “pode ser pedida por quem seja prejudicado pela aplicação da norma ou possa previsivelmente vir a sê-lo em momento próximo, desde que a aplicação da norma tenha sido recusada por qualquer tribunal em três casos concretos, com fundamento na sua ilegalidade”. Quando os efeitos da aplicação da norma se produzem imediatamente, diz o n.º2 do artigo 73.º CPTA que o lesado, cuja ilegitimidade é aferida nos termos do número anterior, pode obter a desaplicação da norma, pedindo a declaração da sua ilegalidade com efeitos circunscritos ao caso concreto.
Também quem alegue um prejuízo diretamente resultante de uma situação de omissão pode pedir ao tribunal administrativo a declaração de ilegalidade da mesma – artigo 77.º/1 do CPTA.
Na Secção III do Capítulo II do Título III do CPTA, não existe nenhum preceito sobre legitimidade passiva, talvez, embora injustificadamente, porque,  no caso do n.º 1 do artigo 73.º, a declaração de ilegalidade tem força obrigatória geral. É óbvio, porém, que não apenas no caso regulado no n.º2 do artigo 73.º, mas também nos restantes, pode haver contra-interessados, identificados pela aplicação da norma impugnada a um caso concreto. Portanto, a observação de natureza similar pode ser feita em relação aos contra-interessados na declaração de ilegalidade por omissão.

A grande diferença entre a legitimidade nas ações administrativas comuns e a legitimidade nas ações administrativas especiais de impugnação do ato administrativo e das normas – mas não já de ação de condenação à prática de atos administrativos – diz respeito ao facto de os interesses que abrem aos seus portadores o acesso aos tribunais administrativos não serem, no caso destas últimas, necessariamente qualificadas pelo CPTA, como situações jurídicas subjetivas. A maior da doutrina portuguesa, com a concordância da jurisprudência, admite que a legitimidade pode derivar de meras situações de facto, simples situações de vantagem de caráter económico ou outro, as quais não podem ser objeto de direitos ou interesses legalmente protegidos, ou ser objeto mediato de relações jurídicas.

Para efeito de impugnação dos atos administrativos, a categoria fundante de legitimidade ativa é a titularidade de um interesse direto e pessoal no provimento da impugnação. A alegação que o ato impugnado é lesivo de direitos ou interesses legalmente protegidos surge apenas como uma entre outra possíveis materializações daquele superconceito, que abarca situações meramente fáticas que permitam estabelecer um nexo de vantagem, individualizada e não mediatizada por outros eventos, entre o provimento de impugnação e um benefício para o autor.”
Sérvulo Correia

Pelas mesmas razões, esta posição é igualmente sustentada quanto à legitimidade passiva dos contra-interessados.

Na justiça administrativa, e admitindo que entre o autor e autoridade contra quem se propõe a ação existe, ou melhor, é afirmada a existência de uma relação jurídica, há que resolver o modo de configurar, em termos de direito substantivo, a situação substantiva dos contra-interessados subjacente ao litisconsórcio necessário passivo.
Importa averiguar se a situação do contra-interessado pode ser, algumas vezes ou sempre, uma posição subjetiva não considerada pelo ordenamento jurídico, isto é, uma situação de facto. Mas há que apurar se existem situações de facto, cujo nexo com o autor ou os contra-interessados lhes confira legitimidade nas ações administrativas comuns ou especiais, ou, se pelo contrário, a legitimidade das partes no contencioso administrativo assenta sempre na conexão com situações subjetivas relevantes e protegidas pelo ordenamento.

A consagração na Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) de 1976, dos direitos, liberdades e garantias através de preceitos diretamente aplicáveis vinculando as entidades públicas e privadas – artigo 18.º/1 – e a instituição de um Tribunal Constitucional – artigos 221.º, 223.º/1 e 227.º e segs. -, e ainda a existência da garantia da tutela jurisdicional efetiva dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos administrados – artigo 268.º/4 – oferecem hoje aos cidadãos e aos estrangeiros e apátridas – artigo 15.º/1, um “status negativus” praticamente sem lacunas.
O nosso direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade e à capacidade civil consagrado no artigo 26.º/1 da CRP aplicar-se-á na falta de um direito fundamental geral específico previsto na CRP. No que se reporta à tutela jurisdicional frente à Administração, o artigo 26.º encontra-se numa relação de generalidade/especialidade com os artigos 20.º/1, e 268.º/4, todos da CRP, e o artigo 4.º/1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e o artigo 2.º/1 e 2 do CPTA.
Os direitos fundamentais  não são habitualmente diretamente aplicados pelo juiz, socorrendo-se dos chamados efeitos externos imediatos daqueles direitos. É o legislador ordinário que, no âmbito da sua larga discricionariedade, desenvolve os efeitos normativos internos dos direitos fundamentais. É a sua função e prerrogativa num Estado democrático. Mas, nas hipóteses em que não é possível invocar um preceito de direito ordinário que realize a proteção da situação que o ordenamento jurídico-constitucional consagra através do âmbito de aplicação do direito fundamental, o juiz está vinculado a reconhecer a solução que este diretamente impõe no caso concreto. O mesmo acontece quando a norma ordinária viola o direito fundamental ou o traduz por forma deficiente.
As situações subjetivas aparentemente de facto, de que o juiz tem conhecimento e protege, estão afinal abrangidas pelo âmbito de proteção de um direito fundamental, ou não poderão ser consideradas para efeitos de legitimidade e da decisão das questões de fundo.

A aplicação direta dos direitos fundamentais verifica-se não apenas nas relações administrativas verticais, por falta ou desaplicação de lei ordinária violadora de direitos fundamentais, em que apenas se tem de entrar em consideração com a autoridade administrativa e o particular destinatário direto dos efeitos do ato, mas, também, por forma particularmente visível, mas relações poligonais.
Existem relações jurídicas poligonais constituídas por direta aplicação das normas constitucionais, sem que houvesse “interpositio” do legislador ordinário, ou relações em que a autoridade administrativa interpreta conceitos largamente indeterminados, ou exerce poderes amplamente discricionários que lhe foram conferidos pelo legislador ordinário. Nestes casos, a ponderação relativa dos interesses em conflito não foi sopesada a nível normativo, devendo realizar-se em momento posterior, no procedimento administrativo, ou, na falta deste, somente no processo contencioso.
O bem, objeto do direito fundamental, goza de uma proteção absoluta, “erga omnes”, o que, apesar do titular do dever de abstenção e também dos deveres posteriores de proteção ser sempre e só o Estado, aproxima em certos aspetos, os direitos fundamentais de liberdade dos direitos absolutos. O Estado não apenas não perturbar ou impedir o exercício dos direitos de liberdade dos cidadãos, como tem de tomas as medidas adequadas para obstar a que terceiros dificultem ou impossibilitem o gozo ou o uso desses direitos.

Nas relações poligonais constitucionais temos como sujeitos o Estado, o ofendido e o prevaricador (tendo em base a doutrina alemã).
O titular do dever de proteção é sempre o Estado, mas quem provoca o excesso de ingerência estadual é o terceiro prevaricador, o qual põe em perigo ou ofende o bem jurídico objeto do direito fundamental do particular. O Estado realiza uma ponderação entre o bem objeto do direito fundamental do ofendido pela ingerência estadual injustificada provocada pelo terceiro e as medidas (atos) que, de acordo com o princípio da proporcionalidade, deve tomar.
Poderá em algumas destas situações, quando for proposta ação, quer pelo ofendido, designadamente por pretender a prática de um ato devido, quer pelo prevaricador, por entender que houve excesso nos atos praticados, parecer que a situação de autor ou de contra-interessado, que o leva a exercer o direito de ação, é meramente de facto. Mas, procedendo a um exame mais aprofundado, concluímos estar perante a defesa de um direito fundamental em que não é possível, por inexistente, invocar uma norma de direito ordinário. A existência de uma proteção sem lacunas do “agere licere” através dos direitos fundamentais de liberdade consagrados direta ou indiretamente (direitos de natureza análoga) na CRP, permite afirmar que, também nas ações administrativas especiais, todas as posições cuja conexão com autores ou réus particulares autoriza que participem no processo, assim lhes conferindo legitimidade presencial, são situações subjetivas jurídicas e não meramente de facto.
O largo espectro de bens que podem ser objecto de proteção por um direito fundamental explica que, num primeiro momento, possa parecer que a situação, que justifica a legitimidade, seja meramente fáctica. Na verdade, encontramo-nos sempre perante a pretensão de tutelar direitos ou interesses legalmente protegidos. Quando, por indicação inequívoca da lei, for admitido o exercício do direito de ação para defesa de algum interesse não protegido por um direito subjetivo, interesse legítimo, ou ainda diretamente por um direito fundamental, estamos na realidade perante uma ação popular ou um caso especial de exercício privado da função de controlo de legalidade de atos administrativos.
Esta é a consequência inevitável do nosso ordenamento jurídico ter consagrado um Estado de direito e adoptado uma declaração de direitos fundamentais com uma força imediatamente vinculante em relação a todos os poderes do Estado, assegurando a todos os cidadãos e a todos os estrangeiros e apátridas uma proteção sem lacunas das suas liberdades, nos termos dos artigos 2.º, 12.º/1, 13.º, 15.º/1 e 18.º da CRP.



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