O Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA),
define em termos diferentes a legitimidade das partes nas ações administrativas
comuns e nas ações administrativas especiais.
Nas primeiras, o autor tem legitimidade ativa quando alegue ser parte na
relação material controvertida – artigo 9.º/1 do CPTA – e o réu possui
legitimidade passiva quando for a outra parte na mesma relação material,
acrescentando ainda a lei “e quando for o caso disso, as pessoas ou entidades
titulares de interesses contrapostos aos do autor” – artigo 10.º/1 do CPTA.
Nas segundas, nas ações administrativas especiais, a legitimidade é
definida diferentemente, consoante considerarmos as ações de impugnação de atos
administrativos, as de condenação à prática de ato devido, as de impugnação de
normas e as de declaração de ilegalidade por omissão de norma devida.
A legitimidade nas ações administrativas comuns é concebida em termos
idênticos aos da legitimidade das partes no âmbito do processo civil. Refere,
com efeito, o artigo 26.º/3 do Código do Processo Civil (CPC) que, “na falta de
indicação em contrário, serão considerados titulares de interesses relevantes
para o efeito da legitimidade, os sujeitos da relação controvertida, tal como é
configurada pelo autor”.
Nas ações administrativas especiais de impugnação tem legitimidade para
impugnar “quem alegue ser titular de um interesse direto e pessoal,
designadamente por ter sido lesado pelo ato nos seus direitos ou interesses
legalmente protegidos” – artigo 55.º/1 alínea a) do CPTA – e as “pessoas
coletivas públicas ou privadas, quanto aos direitos ou interesses que lhes
cumpre defender” – artigo 55.º/1 alínea c) do CPTA – e a legitimidade passiva,
para além da entidade autora do ato impugnado, “os contra-interessados a quem o
provimento do processo impugnatório possa diretamente prejudicar ou que tenham
legítimo interesse na manutenção do ato impugnado em função da relação material
em causa ou dos documentos contidos no processo administrativo” – artigo 57.º do CPTA.
Quanto às ações de condenação à prática de ato administrativo devido,
tem legitimidade para pedir a condenação “quem alegue ser titular de um direito
ou interesse legalmente protegido, dirigido à emissão do ato” e “as pessoas
coletivas públicas ou privadas, em relação aos direitos e interesses que lhes
cumpre defender” – artigo 68.º/1 do CPTA, respectivamente alíneas a) e b).
Possuem legitimidade passiva, para além
da entidade responsável pela situação de omissão legal, “os
contra-interessados a quem a prática do ato omitido possa diretamente
prejudicar ou que tenham legítimo interesse em que ele não seja praticado e que
possam ser identificados em função da relação material em causa ou dos documentos
contidos no processo administrativo” – Artigo 68.º/2 do CPTA.
Quanto ao processo de impugnação das normas, a declaração de ilegalidade
com força obrigatória geral, nos termos do artigo 73.º/1 do CPTA, “pode ser
pedida por quem seja prejudicado pela aplicação da norma ou possa
previsivelmente vir a sê-lo em momento próximo, desde que a aplicação da norma
tenha sido recusada por qualquer tribunal em três casos concretos, com
fundamento na sua ilegalidade”. Quando os efeitos da aplicação da norma se produzem
imediatamente, diz o n.º2 do artigo 73.º CPTA que o lesado, cuja ilegitimidade
é aferida nos termos do número anterior, pode obter a desaplicação da norma,
pedindo a declaração da sua ilegalidade com efeitos circunscritos ao caso
concreto.
Também quem alegue um prejuízo diretamente resultante de uma situação de
omissão pode pedir ao tribunal administrativo a declaração de ilegalidade da
mesma – artigo 77.º/1 do CPTA.
Na Secção III do Capítulo II do Título III do CPTA, não existe nenhum
preceito sobre legitimidade passiva, talvez, embora injustificadamente,
porque, no caso do n.º 1 do artigo 73.º,
a declaração de ilegalidade tem força obrigatória geral. É óbvio, porém, que
não apenas no caso regulado no n.º2 do artigo 73.º, mas também nos restantes, pode
haver contra-interessados, identificados pela aplicação da norma impugnada a um
caso concreto. Portanto, a observação de natureza similar pode ser feita em
relação aos contra-interessados na declaração de ilegalidade por omissão.
A grande diferença entre a legitimidade nas ações administrativas comuns
e a legitimidade nas ações administrativas especiais de impugnação do ato
administrativo e das normas – mas não já de ação de condenação à prática de
atos administrativos – diz respeito ao facto de os interesses que abrem aos
seus portadores o acesso aos tribunais administrativos não serem, no caso
destas últimas, necessariamente qualificadas pelo CPTA, como situações
jurídicas subjetivas. A maior da doutrina portuguesa, com a concordância da
jurisprudência, admite que a legitimidade pode derivar de meras situações de
facto, simples situações de vantagem de caráter económico ou outro, as quais
não podem ser objeto de direitos ou interesses legalmente protegidos, ou ser
objeto mediato de relações jurídicas.
“Para efeito de impugnação dos
atos administrativos, a categoria fundante de legitimidade ativa é a
titularidade de um interesse direto e pessoal no provimento da impugnação. A
alegação que o ato impugnado é lesivo de direitos ou interesses legalmente protegidos
surge apenas como uma entre outra possíveis materializações daquele
superconceito, que abarca situações meramente fáticas que permitam estabelecer
um nexo de vantagem, individualizada e não mediatizada por outros eventos,
entre o provimento de impugnação e um benefício para o autor.”
Sérvulo Correia
Pelas mesmas razões, esta posição é igualmente sustentada quanto à
legitimidade passiva dos contra-interessados.
Na justiça administrativa, e admitindo que entre o autor e autoridade
contra quem se propõe a ação existe, ou melhor, é afirmada a existência de uma
relação jurídica, há que resolver o modo de configurar, em termos de direito
substantivo, a situação substantiva dos contra-interessados subjacente ao
litisconsórcio necessário passivo.
Importa averiguar se a situação do contra-interessado pode ser, algumas
vezes ou sempre, uma posição subjetiva não considerada pelo ordenamento
jurídico, isto é, uma situação de facto. Mas há que apurar se existem situações
de facto, cujo nexo com o autor ou os contra-interessados lhes confira
legitimidade nas ações administrativas comuns ou especiais, ou, se pelo
contrário, a legitimidade das partes no contencioso administrativo assenta
sempre na conexão com situações subjetivas relevantes e protegidas pelo ordenamento.
A consagração na Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) de
1976, dos direitos, liberdades e garantias através de preceitos diretamente
aplicáveis vinculando as entidades públicas e privadas – artigo 18.º/1 – e a
instituição de um Tribunal Constitucional – artigos 221.º, 223.º/1 e 227.º e
segs. -, e ainda a existência da garantia da tutela jurisdicional efetiva dos
direitos ou interesses legalmente protegidos dos administrados – artigo 268.º/4
– oferecem hoje aos cidadãos e aos estrangeiros e apátridas – artigo 15.º/1, um
“status negativus” praticamente sem lacunas.
O nosso direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade e à
capacidade civil consagrado no artigo 26.º/1 da CRP aplicar-se-á na falta de um
direito fundamental geral específico previsto na CRP. No que se reporta à
tutela jurisdicional frente à Administração, o artigo 26.º encontra-se numa
relação de generalidade/especialidade com os artigos 20.º/1, e 268.º/4, todos
da CRP, e o artigo 4.º/1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e
o artigo 2.º/1 e 2 do CPTA.
Os direitos fundamentais não são
habitualmente diretamente aplicados pelo juiz, socorrendo-se dos chamados
efeitos externos imediatos daqueles direitos. É o legislador ordinário que, no
âmbito da sua larga discricionariedade, desenvolve os efeitos normativos
internos dos direitos fundamentais. É a sua função e prerrogativa num Estado
democrático. Mas, nas hipóteses em que não é possível invocar um preceito de
direito ordinário que realize a proteção da situação que o ordenamento
jurídico-constitucional consagra através do âmbito de aplicação do direito
fundamental, o juiz está vinculado a reconhecer a solução que este diretamente
impõe no caso concreto. O mesmo acontece quando a norma ordinária viola o direito
fundamental ou o traduz por forma deficiente.
As situações subjetivas aparentemente de facto, de que o juiz tem
conhecimento e protege, estão afinal abrangidas pelo âmbito de proteção de um
direito fundamental, ou não poderão ser consideradas para efeitos de
legitimidade e da decisão das questões de fundo.
A aplicação direta dos direitos fundamentais verifica-se não apenas nas
relações administrativas verticais, por falta ou desaplicação de lei ordinária
violadora de direitos fundamentais, em que apenas se tem de entrar em
consideração com a autoridade administrativa e o particular destinatário direto
dos efeitos do ato, mas, também, por forma particularmente visível, mas
relações poligonais.
Existem relações jurídicas poligonais constituídas por direta aplicação
das normas constitucionais, sem que houvesse “interpositio” do legislador
ordinário, ou relações em que a autoridade administrativa interpreta conceitos
largamente indeterminados, ou exerce poderes amplamente discricionários que lhe
foram conferidos pelo legislador ordinário. Nestes casos, a ponderação relativa
dos interesses em conflito não foi sopesada a nível normativo, devendo
realizar-se em momento posterior, no procedimento administrativo, ou, na falta
deste, somente no processo contencioso.
O bem, objeto do direito fundamental, goza de uma proteção absoluta,
“erga omnes”, o que, apesar do titular do dever de abstenção e também dos
deveres posteriores de proteção ser sempre e só o Estado, aproxima em certos
aspetos, os direitos fundamentais de liberdade dos direitos absolutos. O Estado
não apenas não perturbar ou impedir o exercício dos direitos de liberdade dos
cidadãos, como tem de tomas as medidas adequadas para obstar a que terceiros
dificultem ou impossibilitem o gozo ou o uso desses direitos.
Nas relações poligonais constitucionais temos como sujeitos o Estado, o
ofendido e o prevaricador (tendo em base a doutrina alemã).
O titular do dever de proteção é sempre o Estado, mas quem provoca o
excesso de ingerência estadual é o terceiro prevaricador, o qual põe em perigo
ou ofende o bem jurídico objeto do direito fundamental do particular. O Estado
realiza uma ponderação entre o bem objeto do direito fundamental do ofendido
pela ingerência estadual injustificada provocada pelo terceiro e as medidas
(atos) que, de acordo com o princípio da proporcionalidade, deve tomar.
Poderá em algumas destas situações, quando for proposta ação, quer pelo
ofendido, designadamente por pretender a prática de um ato devido, quer pelo
prevaricador, por entender que houve excesso nos atos praticados, parecer que a
situação de autor ou de contra-interessado, que o leva a exercer o direito de
ação, é meramente de facto. Mas, procedendo a um exame mais aprofundado,
concluímos estar perante a defesa de um direito fundamental em que não é
possível, por inexistente, invocar uma norma de direito ordinário. A existência
de uma proteção sem lacunas do “agere licere” através dos direitos fundamentais
de liberdade consagrados direta ou indiretamente (direitos de natureza análoga)
na CRP, permite afirmar que, também nas ações administrativas especiais, todas
as posições cuja conexão com autores ou réus particulares autoriza que
participem no processo, assim lhes conferindo legitimidade presencial, são
situações subjetivas jurídicas e não meramente de facto.
O largo espectro de bens que podem ser objecto de proteção por um
direito fundamental explica que, num primeiro momento, possa parecer que a
situação, que justifica a legitimidade, seja meramente fáctica. Na verdade,
encontramo-nos sempre perante a pretensão de tutelar direitos ou interesses
legalmente protegidos. Quando, por indicação inequívoca da lei, for admitido o
exercício do direito de ação para defesa de algum interesse não protegido por
um direito subjetivo, interesse legítimo, ou ainda diretamente por um direito
fundamental, estamos na realidade perante uma ação popular ou um caso especial
de exercício privado da função de controlo de legalidade de atos
administrativos.
Esta é a consequência inevitável do nosso ordenamento jurídico ter
consagrado um Estado de direito e adoptado uma declaração de direitos
fundamentais com uma força imediatamente vinculante em relação a todos os
poderes do Estado, assegurando a todos os cidadãos e a todos os estrangeiros e
apátridas uma proteção sem lacunas das suas liberdades, nos termos dos artigos
2.º, 12.º/1, 13.º, 15.º/1 e 18.º da CRP.
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