A
Impugnação de Normas Regulamentares, Antes e Depois da Reforma
A
existência de um contencioso de normas administrativas, de alcance genérico, é
uma das inovações do direito português recente (iniciada depois da reforma de
84/85), mesmo quando comparando com algumas experiências europeias.
A
impugnação judicial directa de normas administrativas, designadamente de
regulamentos, sempre teve um tratamento próprio na legislação e doutrina
administrativa, em que sempre se denotou uma resistência à sua admissibilidade.
Num primeiro plano, por estarem em causa regras gerais e abstractas, em
principio insusceptiveis de produzirem lesões directas na esfera dos
particulares, pois a lesão resultaria do acto de aplicação do regulamento. Num
outro plano, quando estavam em causa regulamentos governamentais, por um
tradicional respeito pela autoridade do Governo, muitas vezes expressa das opções
politicas ou quase politicas.
Quanto
ao primeiro argumento, podemos afirmar que o reforço das ideias de legalidade
administrativa e de protecção dos administrados, associado à verificação da
lesividade efectiva de muitos actos normativos, destruiu ou, pelo menos,
limitou o argumento da abstracção contra a impugnabilidade directa dos
regulamentos.
Quanto
ao segundo argumento, a atribuição ao Governo de poderes legislativos normais,
ao permitir uma distinção formal entre actos legislativos e actos
regulamentares do Executivo, corroeu o argumento da separação de poderes contra
a invalidação jurisdicional dos regulamentos centrais.
A
partir da revisão de 1997, passou a ter consagração expressa na CRP (artigo
268º/5 da CRP) o direito da impugnação judicial directa de normas
administrativas com eficácia externa, quando sejam lesivas de direitos ou
interesses legalmente protegidos dos particulares, no âmbito da garantia da
respectiva protecção judicial efectiva.
Antes
da reforma, era possível reagir contenciosamente contra regulamentos administrativos
de três formas distintas:
1.
Via incidental: o regulamento era apreciado apenas indirectamente, como
incidente da questão principal, pois o que estava em causa era o recurso
directo de anulação de um acto administrativo cuja ilegalidade era consequente
da aplicação de regulamento inválido. Daqui resultava a anulação do acto
administrativo e a não aplicação do regulamento ao caso concreto. Não é um meio
autónomo.
2.
Um meio processual genérico: a declaração de ilegalidade de normas
administrativas. Era um meio utilizável contra qualquer norma regulamentar,
independentemente do órgão de onde era emanada, mas na condição de ser tratar
de norma exequível por si mesma, ou de ter sido, já antes, jugada ilegal.
3.
Um meio processual especial: impugnação de normas. Tinha um âmbito de aplicação
limitado, pois respeitava apenas aos regulamentos provenientes da administração
local comum. Mas em contrapartida não estava sujeito às condições estabelecidas
para a via anterior, verificando-se uma espécie de assimilação processual dos
regulamentos aos actos administrativos.
Depois
da reforma, passou a poder reagir-se pedindo a declaração de ilegalidade
das normas emanadas ao abrigo de disposições de direito administrativo, com
fundamento em vícios próprios (invalidade própria) ou decorrentes da invalidade
de actos praticados no âmbito do procedimento de aprovação (invalidade derivada).
Apesar
de não aparecer formulado nesses termos, resulta dos artigos 72º e 73º do CPTA
que se admitem dois tipos de pedidos, sujeitos a regimes diferentes:
1.
Pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória e geral: nunca
pode fundar-se numa inconstitucionalidade directa, por constituir um pedido
cujo conhecimento está subtraído à jurisdição administrativa (artigo 72º/2 do
CPTA).
Esta
só pode ser pedida pelos particulares interessados depois da norma ter sido
desaplicada em três casos concretos, requisito que, no entanto, não é exigido
se o pedido for feito pelo MP, oficiosamente ou a requerimento de entidades
legitimadas para a acção popular.
2.
Pedido de declaração de ilegalidade num caso concreto: Esta pode ser
pedida pelo lesado ou pelos titulares da acção popular quando a norma produza
os seus efeitos imediatamente, sem depender de um acto administrativo ou
judicial de aplicação (artigo 73º/2 do CPTA).
Há
aqui uma uniformização do regime jurídico do contencioso regulamentar, podno
termo à dicotomia de meios processuais antes existentes (autónomos, ou seja, o genérico
e o especial).
Estabelece-se,
então, um regime uniforme, tomando como padrão o anterior meio processual
genérico, ainda que com a introdução de alterações e de restrições aos
requisitos de apreciação das normas regulamentares.
Quanto
aos prazos, segundo o disposto no artigo 74º do CPTA, a declaração de
ilegalidade pode ser pedida a todo o tempo, sem prejuízo do diferimento
temporal que decorre da necessidade de verificação da recusa em três casos
concretos, quando esta seja exigida.
Estas
acções têm, por determinação legal, um valor indeterminável, considerando-se,
por isso, um valor superior ao da alçada dos TCA. São julgadas em primeira
instância, por uma formação de três juízes, cujas sentenças são susceptiveis de
recurso per saltum ou de recurso excepcional de revista para o STA.
Quanto
aos seus efeitos, a lei refere-se expressamente aos efeitos de declaração de
ilegalidade com força obrigatória geral (artigo 76º). Verifica-se aqui uma
inovação bastante significativa, que constitui uma aproximação ao modelo da
fiscalização da constitucionalidade: ao invés do que sucedia antes, os efeitos
da declaração de ilegalidade com força obrigatória geral produzem-se, em regra,
ex tunc, determinando a repristinação das normas revogadas, sem prejuízo de o
tribunal poder determinar que os efeitos se produzam apenas para o futuro,
quando tal se justifique por razoes de segurança jurídica, de equidade ou de
interesse público de excepcional relevo.
Bibliografia:
- Vasco Pereira da Silva, “O Contencioso
Administrativo no Divã da Psicanálise. Ensaios sobre as acções no novo processo
administrativo”, 2ª Edição, Almedina, 2009
- José Carlos Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa
(Lições)”, Almedina, 2011
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