1. A
Europeização do Direito Administrativo
Da europeização do Direito Administrativo tem-se vindo a
falar, desde há muitas décadas, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial[1].
Era da europeização que falava a escola de Mauro Cappelletti[2],
quando incrementou o uso do método comparativo quando ao Direito
Administrativo. Este Professor italiano pretendia, pela via do Direito
Comparado, chegar a um “ius communis
europearum”, pensando, obviamente, de modo especial, no Direito
Administrativo.
Mas foi sobretudo com a criação das Comunidades Europeias,
nos anos 50, que mais concretamente se começou a pensar naquilo a que hoje
chamamos de europeização dos Direitos nacionais.
2. A
Execução Administrativa do Direito Comunitário pelos Estados-Membros e a
aplicação deste por via do Contencioso Administrativo nacional. A Europeização
do Contencioso Administrativo
O Direito Administrativo, incluindo nele o Contencioso
Administrativo, sofre uma forte influência do Direito Comunitário. Na
realidade, a Administração Pública tem um papel muito importante na aplicação
quotidiana do Direito Comunitário. Ora, isso faz com que o Direito
Administrativo seja permanentemente moldado pelo Direito Comunitário, de a modo
a poder assegurar a plena eficácia deste na ordem interna do Estado.
Os principais domínios dos Direitos Administrativos
nacionais, incluindo do português, que têm sofrido esse impacto do Direito
Comunitário são – a configuração da função administrativa, a organização
administrativa, o procedimento administrativo, a atividade administrativa, os
métodos de gestão administrativa, as garantias dos particulares, para só
falarmos de matérias do Direito Administrativo geral, porque, se fossemos para o
Direito Administrativo especial, o Direito Comunitário influi fortemente no
Direito Administrativo Económico e Financeiro, no Direito Administrativo das
Autarquias Locais, no Direito Administrativo da Concorrência, no Direito
Administrativo da Segurança Social, no Direito Administrativo da Saúde, no
Direito Administrativo da Educação, no Direito Administrativo da Energia, no
Direito Administrativo do Ordenamento do Território, do Urbanismo ou do
Ambiente, entre outros.
Neste breve estudo, vamos debruçar-nos apenas sobre as
questões mais prementes que, no atual estádio da europeização, esta coloca ao
Contencioso Administrativo, particularmente ao Contencioso Administrativo
português.
3.
IDEM: I – A invocação perante um tribunal administrativo nacional da invalidade
de uma norma ou de um ato de direito comunitário
Pode acontecer que num tribunal administrativo nacional seja
invocada a invalidade de um ato (entenda-se norma ou ato) de Direito
Comunitário. O juiz nacional não tem competência para declarar a nulidade ou
anular esse ato, dado o princípio da separação entre a jurisdição nacional e a
jurisdição comunitária. Mas, se o juiz nacional se inclinar para essa
invalidade, ou se considerar que tem dúvidas sobre ela, e entender que uma
decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento do litígio principal, ele
é obrigado, mesmo que da sentença do tribunal em causa caiba recurso
jurisdicional de Direito interno, a suscitar perante o TJ a questão prejudicial
de apreciação da validade do ato de Direito Comunitário. É o que resulta do
Acórdão proferido Foto-Frost[3].
4.
IDEM:II - A responsabilidade extracontratual do Estado por ato do poder
judicial
Após o caso Francovich,
decidido pelo Tribunal há já quinze anos[4],
alteraram-se os quadros clássicos da responsabilização do Estado por
incumprimento ou violação do Direito Comunitário.
Os pressupostos da responsabilidade extracontratual da
Comunidade, para o Acórdão Francovich,
eram os mesmos da fase anterior a ele, ou seja:
a) A
ilicitude do comportamento do órgão ou do agente;
b) Violação
pelo ato normativo de uma regra superior de Direito que protege direitos dos
particulares;
c) Violação
suficientemente caracterizada (por aqui impõe-se que o facto ilícito provoque
um prejuízo suficientemente grave;
d) Prejuízo
(deve ser certo e susceptível de avaliação pecuniária, além disso, deve
revestir a forma de dano emergente ou de lucro cessante);
e) Nexo de
causalidade (nos termos gerais da teoria da responsabilidade, deve haver uma
relação de causalidade entre o facto e o prejuízo.
Com a evolução da jurisprudência iniciada no caso Francovich, o TJ foi aperfeiçoando,
alterando ou adaptando às novas circunstâncias alguns destes requisitos.
Assim, depressa o TJ admitiu que a responsabilidade
extracontratual dos Estados pudesse ser gerada por atos não normativos, ou
seja, atos não legislativos: por atos administrativos, como o TJ aceitou no
caso Hendley Lomas[5],
ou por atos jurisdicionais, como ele reconheceu no caso Kobler, onde, embora tivesse entendido que isso não acontecera no
caso concreto, o TJ deixou decidido que “o princípio segundo o qual os Estados
Membros são obrigados a ressarcir os danos causados aos particulares pelas
violações do Direito Comunitário que lhes são imputáveis é igualmente aplicável
quando a violação em causa resulte de
uma decisão de um órgão jurisdicional decidindo em última instância, desde que
a norma de Direito Comunitário violada se destine a conferir direitos aos
particulares, que a violação seja suficientemente caracterizada e que existe um
nexo de causalidade direto entre a violação e o dano sofrido pelas pessoas
lesadas. A fim de determinar se tal violação é suficientemente caracterizada
quando a violação em causa resulte dessa decisão, o juiz nacional competente
deve, tendo em conta a especificidade da função judicial, apurar se essa
violação tem carácter manifesto. É a Ordem Jurídica de cada Estado-Membro que
cabe designar o órgão jurisdicional competente para decidir os litígios
relativos a tal ressarcimento”.
O caso Kobler
destaca-se dentro da jurisprudência comunitária porque o TJ aplica a teoria da
responsabilidade, tal como ela se foi desenvolvendo a partir do caso Francovich, também a atos de órgãos
jurisdicionais, com a dupla condição de que se trate de um tribunal que decida
em última instância e de que, neste caso, a violação, para poder ser
qualificada de “suficientemente caracterizada”, tenha “carácter manifesto”. Ou
seja, neste último aspecto, o TJ restringe, ao seu carácter manifesto”, e sem
dizer por que fundamentos jurídicos o faz, o requisito da violação suficientemente caracterizada, quando ela
provier de um órgão jurisdicional julgando em última instância. No caso
Traghetti del Mediterraneo, SA[6],
o TJ deu um passo em frente em relação ao decidido nesse Acórdão sobre a
responsabilidade do Poder Judicial. O TJ decidiu aí que “o Direito Comunitário
opõe-se a um regime legal nacional que exclua, de uma forma geral, a
responsabilidade do Estado-Membro por danos causados aos particulares em
virtude de uma violação do Direito Comunitário, imputável a um órgão
jurisdicional que decide em última instância pelo facto de essa violação
resultar de uma interpretação de normas jurídicas ou de uma apreciação dos
factos e das provas efectuadas por esse órgão jurisdicional”. Isso parece
resolver a responsabilização do Estado-Juiz pela substância da sua decisão. Mas
o TJ acrescenta ainda que “o Direito Comunitário opõe-se igualmente a um regime
nacional que limite essa responsabilidade aos casos de dolo ou de culpa grave
do Juiz, se essa limitação levar a excluir a responsabilidade do Estado-Membro
em causa noutros casos em que se tenha verificado uma manifesta ignorância do
direito aplicável, tal como precisado nos n.os53 a 56 do acórdão de
30 de Setembro de 2003, Kobler
(C-224/01)”.
Ou seja, Estado é responsável por culpa grave ou dolo do
Juiz, e mesmo sem culpa grave ou dolo deste, “noutros casos em que se tenha
verificado uma manifesta ignorância do Direito aplicável”, tal como isso havia
ficado definido nos n.os53 a 56 do caso Kobler. Este acórdão veio responsabilizar o Estado por atos do Juiz
quando a ignorância, por este, do Direito aplicável, não se ficar a dever só a
culpa grave ou dolo.
Sublinhe-se que o enquadramento jurídico que neste caso o TJ
concede à responsabilidade do Estado-Juiz se encaixa, de um modo geral, no
regime que para ela se encontra definido na proposta de lei que o Governo
Português apresentou à Assembleia da República sobre a Lei da Responsabilidade
Extracontratual do Estado, na parte respeitante à responsabilidade do Poder
Judicial.
Sendo a responsabilidade em causa de Direito Comunitário,
pelo simples facto de ela nascer da violação do Direito Comunitário, o dever de
reparar o prejuízo causado decorre do Direito Comunitário. Consequentemente,
também os critérios do cômputo da indemnização devem ser fixados pelo Direito
Comunitário. Só que o Direito Comunitário ainda não definiu os critérios de
cômputo da indemnização para este efeito. Entretanto, tem-se aplicado o
critério da reposição da situação hipotética atual, proposto no Acórdão do caso
Marshall II[7].
Isto para dizer que, sendo esse mesmo critério adoptado no nosso Código de
Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) – artigo 47.º/2 alínea b) – os
tribunais administrativos portugueses já têm lei nacional compatível, nesta
matéria, com a jurisprudência Francovich.
5.
IDEM: III – A obrigação de revogação de atos administrativos nacionais
constitutivos de direitos e contrários ao direito comunitário
Dentro do dever que os Estados têm de aplicar o Direito
Comunitário, a que cabe a obrigação de eles eliminarem da respectiva Ordem
Jurídica todos os atos que contrariem o Direito Comunitário. Essa obrigação,
assim enunciada, já fora afirmada pelo TJ no caso Simmenthal, de 1978. Mas atualmente ela ganha uma dimensão muito
maior, desde logo, porque engloba a revogação pelos Estados, e, se necessário,
“ex officio”, dos próprios atos
constitutivos de direito e, aliás, está concebida sobretudo para atos que
tenham essa natureza.
6. A
Europeização do Contencioso Administrativo e o Princípio da Igualdade
A Europeização do Direito Administrativo e, em concreto, a
europeização do Contencioso Administrativo, pode suscitar um importante
problema relativo ao princípio da igualdade.
Na realidade, se, para assegurar a efetividade do Direito
Comunitário na ordem interna o Estado molda a execução do Direito
Administrativo às exigências do Direito Comunitário, iguais exigências tem de
colocar o Direito nacional à execução do respectivo Direito Administrativo. De
facto, criar-se-ia uma situação de desigualdade na ordem interna caso o Direito
Comunitário e o Direito interno fossem aplicados pelo Direito Administrativo de
modo diferente.
Não pode haver, no sistema jurídico interno, domínios menos
favoráveis ao particular por força do Direito de fonte interna do que outras
áreas com fonte no Direito Comunitário.
Solução diferente desta traduzir-se-ia numa discriminação
negativa quando se aplicasse o Direito de fonte interna e poderia, mesmo,
assumir a forma de uma discriminação de nacionais quanto a não-nacionais, isto
é, uma discriminação inversa, o que viola o nosso Direito Constitucional, o
Direito Internacional que obriga Portugal e o próprio Direito Comunitário[8].
Se a harmonização dos Direitos estaduais com o Direito
Comunitário já era da essência do processo de integração, com a entrada em
vigor, em 1993, do Tratado da União Europeia, iniciou-se o processo de
progressiva comunitarização ou europeização das Ordens Jurídicas nacionais,
isto é, da sua progressiva aproximação, por força do impacto que, com a
amplitude material cada vez mais vasta, o Direito da União ia provocando no
interior dos Direitos nacionais e nas várias áreas já cobertas pela integração.
Essa europeização veio a abranger o próprio Direito Constitucional, por força
da necessidade de os Estados adaptarem as respectivas Constituições aos
Tratados em matérias muito importantes para a soberania dos Estados. Mas o
Direito Administrativo tem sido, sem dúvida, um dos ramos, se não o ramo, que
mais tem sofrido esse impacto, através da introdução do Direito Comunitário no
seu interior.
No que especificamente diz respeito ao Direito
Administrativo, que constitui o objecto concreto deste estudo, a sua
europeização tende, mais uma vez, a dar maior efetividade ao Direito
Comunitário na ordem interna dos Estados-Membros, no quadro do tratamento dos
administrados com respeito pelo princípio da igualdade perante o Direito
Comunitário.
[1] Fausto Quadros,
Direito da União Europeia, Coimbra,
2004, págs. 322-329, 408-409, 497-502, 506-518 e 525-555.
[3] Ac.
22-10-87. Proc. 314/85.
[4] Ac.
19-11-91. Procs. C-6/90 e C-9/90.
[5] Ac.
23-5-96. Proc. C-5/94.
[6] Ac.
13-6-2006. Proc. C-173/03.
[7] Ac.
2-8-93. Proc. C-271/91.
[8] Veja-se
este assunto tratado de modo desenvolvido na Proteção da propriedade privada pelo Direito Internacional Público,
Coimbra, 1998, págs. 562 e segs.
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