terça-feira, 22 de maio de 2012

A Europeização do Contencioso Administrativo


1. A Europeização do Direito Administrativo
Da europeização do Direito Administrativo tem-se vindo a falar, desde há muitas décadas, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial[1].
Era da europeização que falava a escola de Mauro Cappelletti[2], quando incrementou o uso do método comparativo quando ao Direito Administrativo. Este Professor italiano pretendia, pela via do Direito Comparado, chegar a um “ius communis europearum”, pensando, obviamente, de modo especial, no Direito Administrativo.
Mas foi sobretudo com a criação das Comunidades Europeias, nos anos 50, que mais concretamente se começou a pensar naquilo a que hoje chamamos de europeização dos Direitos nacionais.

2. A Execução Administrativa do Direito Comunitário pelos Estados-Membros e a aplicação deste por via do Contencioso Administrativo nacional. A Europeização do Contencioso Administrativo
O Direito Administrativo, incluindo nele o Contencioso Administrativo, sofre uma forte influência do Direito Comunitário. Na realidade, a Administração Pública tem um papel muito importante na aplicação quotidiana do Direito Comunitário. Ora, isso faz com que o Direito Administrativo seja permanentemente moldado pelo Direito Comunitário, de a modo a poder assegurar a plena eficácia deste na ordem interna do Estado.
Os principais domínios dos Direitos Administrativos nacionais, incluindo do português, que têm sofrido esse impacto do Direito Comunitário são – a configuração da função administrativa, a organização administrativa, o procedimento administrativo, a atividade administrativa, os métodos de gestão administrativa, as garantias dos particulares, para só falarmos de matérias do Direito Administrativo geral, porque, se fossemos para o Direito Administrativo especial, o Direito Comunitário influi fortemente no Direito Administrativo Económico e Financeiro, no Direito Administrativo das Autarquias Locais, no Direito Administrativo da Concorrência, no Direito Administrativo da Segurança Social, no Direito Administrativo da Saúde, no Direito Administrativo da Educação, no Direito Administrativo da Energia, no Direito Administrativo do Ordenamento do Território, do Urbanismo ou do Ambiente, entre outros.
Neste breve estudo, vamos debruçar-nos apenas sobre as questões mais prementes que, no atual estádio da europeização, esta coloca ao Contencioso Administrativo, particularmente ao Contencioso Administrativo português.

3. IDEM: I – A invocação perante um tribunal administrativo nacional da invalidade de uma norma ou de um ato de direito comunitário
Pode acontecer que num tribunal administrativo nacional seja invocada a invalidade de um ato (entenda-se norma ou ato) de Direito Comunitário. O juiz nacional não tem competência para declarar a nulidade ou anular esse ato, dado o princípio da separação entre a jurisdição nacional e a jurisdição comunitária. Mas, se o juiz nacional se inclinar para essa invalidade, ou se considerar que tem dúvidas sobre ela, e entender que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento do litígio principal, ele é obrigado, mesmo que da sentença do tribunal em causa caiba recurso jurisdicional de Direito interno, a suscitar perante o TJ a questão prejudicial de apreciação da validade do ato de Direito Comunitário. É o que resulta do Acórdão proferido  Foto-Frost[3].

4. IDEM:II - A responsabilidade extracontratual do Estado por ato do poder judicial
Após o caso Francovich, decidido pelo Tribunal há já quinze anos[4], alteraram-se os quadros clássicos da responsabilização do Estado por incumprimento ou violação do Direito Comunitário.
Os pressupostos da responsabilidade extracontratual da Comunidade, para o Acórdão Francovich, eram os mesmos da fase anterior a ele, ou seja:
a)     A ilicitude do comportamento do órgão ou do agente;
b)    Violação pelo ato normativo de uma regra superior de Direito que protege direitos dos particulares;
c)     Violação suficientemente caracterizada (por aqui impõe-se que o facto ilícito provoque um prejuízo suficientemente grave;
d)    Prejuízo (deve ser certo e susceptível de avaliação pecuniária, além disso, deve revestir a forma de dano emergente ou de lucro cessante);
e)     Nexo de causalidade (nos termos gerais da teoria da responsabilidade, deve haver uma relação de causalidade entre o facto e o prejuízo.

Com a evolução da jurisprudência iniciada no caso Francovich, o TJ foi aperfeiçoando, alterando ou adaptando às novas circunstâncias alguns destes requisitos.
Assim, depressa o TJ admitiu que a responsabilidade extracontratual dos Estados pudesse ser gerada por atos não normativos, ou seja, atos não legislativos: por atos administrativos, como o TJ aceitou no caso Hendley Lomas[5], ou por atos jurisdicionais, como ele reconheceu no caso Kobler, onde, embora tivesse entendido que isso não acontecera no caso concreto, o TJ deixou decidido que “o princípio segundo o qual os Estados Membros são obrigados a ressarcir os danos causados aos particulares pelas violações do Direito Comunitário que lhes são imputáveis é igualmente aplicável quando a violação em causa resulte  de uma decisão de um órgão jurisdicional decidindo em última instância, desde que a norma de Direito Comunitário violada se destine a conferir direitos aos particulares, que a violação seja suficientemente caracterizada e que existe um nexo de causalidade direto entre a violação e o dano sofrido pelas pessoas lesadas. A fim de determinar se tal violação é suficientemente caracterizada quando a violação em causa resulte dessa decisão, o juiz nacional competente deve, tendo em conta a especificidade da função judicial, apurar se essa violação tem carácter manifesto. É a Ordem Jurídica de cada Estado-Membro que cabe designar o órgão jurisdicional competente para decidir os litígios relativos a tal ressarcimento”.
O caso Kobler destaca-se dentro da jurisprudência comunitária porque o TJ aplica a teoria da responsabilidade, tal como ela se foi desenvolvendo a partir do caso Francovich, também a atos de órgãos jurisdicionais, com a dupla condição de que se trate de um tribunal que decida em última instância e de que, neste caso, a violação, para poder ser qualificada de “suficientemente caracterizada”, tenha “carácter manifesto”. Ou seja, neste último aspecto, o TJ restringe, ao seu carácter manifesto”, e sem dizer por que fundamentos jurídicos o faz, o requisito da violação  suficientemente caracterizada, quando ela provier de um órgão jurisdicional julgando em última instância. No caso Traghetti del Mediterraneo, SA[6], o TJ deu um passo em frente em relação ao decidido nesse Acórdão sobre a responsabilidade do Poder Judicial. O TJ decidiu aí que “o Direito Comunitário opõe-se a um regime legal nacional que exclua, de uma forma geral, a responsabilidade do Estado-Membro por danos causados aos particulares em virtude de uma violação do Direito Comunitário, imputável a um órgão jurisdicional que decide em última instância pelo facto de essa violação resultar de uma interpretação de normas jurídicas ou de uma apreciação dos factos e das provas efectuadas por esse órgão jurisdicional”. Isso parece resolver a responsabilização do Estado-Juiz pela substância da sua decisão. Mas o TJ acrescenta ainda que “o Direito Comunitário opõe-se igualmente a um regime nacional que limite essa responsabilidade aos casos de dolo ou de culpa grave do Juiz, se essa limitação levar a excluir a responsabilidade do Estado-Membro em causa noutros casos em que se tenha verificado uma manifesta ignorância do direito aplicável, tal como precisado nos n.os53 a 56 do acórdão de 30 de Setembro de 2003, Kobler (C-224/01)”.
Ou seja, Estado é responsável por culpa grave ou dolo do Juiz, e mesmo sem culpa grave ou dolo deste, “noutros casos em que se tenha verificado uma manifesta ignorância do Direito aplicável”, tal como isso havia ficado definido nos n.os53 a 56 do caso Kobler. Este acórdão veio responsabilizar o Estado por atos do Juiz quando a ignorância, por este, do Direito aplicável, não se ficar a dever só a culpa grave ou dolo.
Sublinhe-se que o enquadramento jurídico que neste caso o TJ concede à responsabilidade do Estado-Juiz se encaixa, de um modo geral, no regime que para ela se encontra definido na proposta de lei que o Governo Português apresentou à Assembleia da República sobre a Lei da Responsabilidade Extracontratual do Estado, na parte respeitante à responsabilidade do Poder Judicial.
Sendo a responsabilidade em causa de Direito Comunitário, pelo simples facto de ela nascer da violação do Direito Comunitário, o dever de reparar o prejuízo causado decorre do Direito Comunitário. Consequentemente, também os critérios do cômputo da indemnização devem ser fixados pelo Direito Comunitário. Só que o Direito Comunitário ainda não definiu os critérios de cômputo da indemnização para este efeito. Entretanto, tem-se aplicado o critério da reposição da situação hipotética atual, proposto no Acórdão do caso Marshall II[7]. Isto para dizer que, sendo esse mesmo critério adoptado no nosso Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) – artigo 47.º/2 alínea b) – os tribunais administrativos portugueses já têm lei nacional compatível, nesta matéria, com a jurisprudência Francovich.

5. IDEM: III – A obrigação de revogação de atos administrativos nacionais constitutivos de direitos e contrários ao direito comunitário
Dentro do dever que os Estados têm de aplicar o Direito Comunitário, a que cabe a obrigação de eles eliminarem da respectiva Ordem Jurídica todos os atos que contrariem o Direito Comunitário. Essa obrigação, assim enunciada, já fora afirmada pelo TJ no caso Simmenthal, de 1978. Mas atualmente ela ganha uma dimensão muito maior, desde logo, porque engloba a revogação pelos Estados, e, se necessário, “ex officio”, dos próprios atos constitutivos de direito e, aliás, está concebida sobretudo para atos que tenham essa natureza.

6. A Europeização do Contencioso Administrativo e o Princípio da Igualdade
A Europeização do Direito Administrativo e, em concreto, a europeização do Contencioso Administrativo, pode suscitar um importante problema relativo ao princípio da igualdade.
Na realidade, se, para assegurar a efetividade do Direito Comunitário na ordem interna o Estado molda a execução do Direito Administrativo às exigências do Direito Comunitário, iguais exigências tem de colocar o Direito nacional à execução do respectivo Direito Administrativo. De facto, criar-se-ia uma situação de desigualdade na ordem interna caso o Direito Comunitário e o Direito interno fossem aplicados pelo Direito Administrativo de modo diferente.
Não pode haver, no sistema jurídico interno, domínios menos favoráveis ao particular por força do Direito de fonte interna do que outras áreas com fonte no Direito Comunitário.
Solução diferente desta traduzir-se-ia numa discriminação negativa quando se aplicasse o Direito de fonte interna e poderia, mesmo, assumir a forma de uma discriminação de nacionais quanto a não-nacionais, isto é, uma discriminação inversa, o que viola o nosso Direito Constitucional, o Direito Internacional que obriga Portugal e o próprio Direito Comunitário[8].


Se a harmonização dos Direitos estaduais com o Direito Comunitário já era da essência do processo de integração, com a entrada em vigor, em 1993, do Tratado da União Europeia, iniciou-se o processo de progressiva comunitarização ou europeização das Ordens Jurídicas nacionais, isto é, da sua progressiva aproximação, por força do impacto que, com a amplitude material cada vez mais vasta, o Direito da União ia provocando no interior dos Direitos nacionais e nas várias áreas já cobertas pela integração. Essa europeização veio a abranger o próprio Direito Constitucional, por força da necessidade de os Estados adaptarem as respectivas Constituições aos Tratados em matérias muito importantes para a soberania dos Estados. Mas o Direito Administrativo tem sido, sem dúvida, um dos ramos, se não o ramo, que mais tem sofrido esse impacto, através da introdução do Direito Comunitário no seu interior.
No que especificamente diz respeito ao Direito Administrativo, que constitui o objecto concreto deste estudo, a sua europeização tende, mais uma vez, a dar maior efetividade ao Direito Comunitário na ordem interna dos Estados-Membros, no quadro do tratamento dos administrados com respeito pelo princípio da igualdade perante o Direito Comunitário.


[1] Fausto Quadros, Direito da União Europeia, Coimbra, 2004, págs. 322-329, 408-409, 497-502, 506-518 e 525-555.
[2] New perspectives for a Common Law of Europe, Leyden, 1978, págs. 389 e segs.
[3] Ac. 22-10-87. Proc. 314/85.
[4] Ac. 19-11-91. Procs. C-6/90 e C-9/90.
[5] Ac. 23-5-96. Proc. C-5/94.
[6] Ac. 13-6-2006. Proc. C-173/03.
[7] Ac. 2-8-93. Proc. C-271/91.
[8] Veja-se este assunto tratado de modo desenvolvido na Proteção da propriedade privada pelo Direito Internacional Público, Coimbra, 1998, págs. 562 e segs.

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