segunda-feira, 14 de maio de 2012

A relação entre o princípio da igualdade e a legitimidade activa


        Como sabemos, o princípio da igualdade assume relevo enquanto princípio de igualdade de oportunidades, acesso à justiça em condição igualitária e de condições reais de vida[1]. E esta igualdade deve-se verificar não só perante a lei, mas identicamente perante o Direito, a justiça e os escopos sociais e políticos. No fundo, perante as dimensões valorativas do Direito. Ora, sendo assim, cumpre reconhecer os elementares passos que o legislador tomou na sua consagração no âmbito do contencioso administrativo. Com efeito, tal indagação será realizada neste texto de investigação, onde determinados artigos do CPTA, nomeadamente quanto à matéria da legitimidade e das suas especificidades em cada uma das acções, serão analisados.
        Diante da reforma do contencioso administrativo, cuja igualdade se verifica como um dos objectivos centrais, é desde logo de referir o artigo 6º do CPTA, que se pode reconduzir a outros dois princípios: o princípio do contraditório e o princípio da igualdade de armas no processo administrativo. Este artigo, que assegura a igualdade de partes em sentido formal, vem erradicar a prática tradicional de que as entidades não podiam ser objecto de sanção no contencioso administrativo por litigância de má-fé. Tal não acontecia na lei anterior, nem na verdade estava sempre na prática dos tribunais administrativos. Actualmente, estando tal realidade consagrada, cabe ao juiz administrativo materializar esta ideia e ponderar os interesses que estão em jogo ao longo do processo, permitindo uma composição materialmente justa das várias pretensões que se confrontem em juízo. Pretensões, essas, que nos levam até à matéria da legitimidade, que apresenta realmente algumas singularidades em cada uma das diferentes acções. Assim, na acção administrativa comum, para além dos sujeitos processuais tradicionais, o CPTA vem alargar o âmbito da legitimidade activa nas acções relativas a contratos. Permite-se agora que terceiros fora da relação contratual proponham as respectivas acções tendentes à anulação do contrato[2]. O alargamento da legitimidade activa abrange também as acções relativas à execução de contratos, previstas no n° 2 do artigo 40°. Na acção de simples apreciação, a demonstração da titularidade conferindo tutela a quem demonstre interesse em agir é prescindível. Já no que diz respeito à acção de condenação de particulares, exige-se a demonstração desse interesse, resultante de uma situação de inadimplência[3]. Exige-se igualmente que haja uma ofensa directa dos direitos ou interesses do particular ou entidade pública. Aqui reconhece-se claramente a presença de uma relação jurídica complexa, que nasce de um vínculo jurídico-administrativo, que visa proteger a posição jurídica dos particulares ou um interesse geral da sociedade.
        No âmbito da acção administrativa especial de referir a acção de impugnação de actos administrativos, prevista no artigo 55°, n° 1, alínea a), que concretiza, sem dúvida nenhuma, o princípio da tutela jurisdicional efectiva. Quanto aos critérios de legitimação processual (interesse directo e pessoal) devem ser entendidos de forma ampla, tendo em conta o disposto do artigo 266°, n° 1 da CRP. Enquanto interesse directo significa que o prejuízo ou a lesão não deva ser tida como eventual, mas sim actual, o interesse pessoal traduz a ideia que do acto tem de resultar uma lesão individualizável de direitos ou interesses legalmente protegidos. Este interesse deixa de ser pessoal, nas palavras de Marcello Caetano, quando é genérico. No fundo, da colectividade em geral ou de uma comunidade inteira. Para além da tutela destes interesses, de referir ainda que o CPTA veio reconhecer a importância emergente dos interesses colectivos, tal como podemos observar no artigo 55°, n° 1, alínea c). Por fim, é ainda de ter em conta a acção de condenação à prática de acto administrativo legalmente devido, em que se adopta uma regra de legitimidade mais restrita. Ao contrário do que sucedia com a impugnação de actos, esta exige que o autor tenha uma pretensão válida perante a Administração, que lhe advém do acto ter sido indevidamente omitido ou recusado. Segundo Mário Aroso de Almeida, a legitimidade para pedir esta condenação pressupõe, a própria legitimidade para requerer a prática do acto. 
            Para além destas questões, é ainda de ter em conta a legitimidade processual activa dos titulares da acção pública e da acção popular. No que toca à primeira, o seu exercício compete principalmente ao Ministério Público (221°, n°1 da CRP)[4]. No âmbito da intervenção do Ministério Público, antes da reforma do contencioso administrativo, este só interviria como defensor da legalidade nos casos em que seria parte ou em representação do Estado. Após a reforma, é lhe conferida a possibilidade de intervenção processual num único momento da acção administrativa especial, sendo-lhe reconhecidas as competências para se pronunciar sobre o mérito da causa e solicitar a realização de diligências instrutórias (artigo 85º do CPTA). Pretende-se que a sua pronúncia tenha como objectivo a defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes, dos valores constantes do nº 2 do artigo 9º do CPTA e a identificação de vícios de inexistência ou nulidade quanto aos actos que tenham sido objecto de impugnação contenciosa. Na verdade, com a Reforma, o Ministério Público perde algum excesso de protagonismo, nas palavras de Vasco Pereira da Silva, o que contribui para o tendencial equilíbrio dos poderes dos intervenientes processuais. Quanto à acção popular, prevista no artigo 52°, n°3 da CRP, assegurada na Lei 83/95, de 31 de Agosto e no n° 2 do artigo 9° do CPTA, cabe apenas mencionar que traduz uns interesses dissemelhantes dos referidos precedentemente a propósito das acções para defesa de direitos. Estamos agora perante um interesse cuja existência é preconcebida abstractamente pela lei em certo número de pessoas convenientemente determinadas e com características bem definidas.
      A par desta relação, de considerar ainda uma relação jurídica triangular, em que se considera, destinatário, Administração e terceiros. Tal não pode ser ignorado, pois a verdade é que começam, cada vez mais, a surgir lesados que não sendo destinatários dos actos administrativos em causa, invocam prejuízos provocados por esses mesmos actos. Esta intervenção é assim entendida como decorrente do princípio da igualdade, onde se reconhece a sua legitimidade processual e uma posição completamente independente. Deste modo, de acordo com o artigo 9º e 10º do CPTA, podemos mesmo afirmar que com a reforma de 2004 se procedeu mesmo a um alargamento do número de pessoas que podem reagir contra as actuações administrativas lesivas dos seus direitos subjectivos. Os contra interessados devem ter os direitos e deveres processuais iguais aos da entidade demandada, nomeadamente o direito de contestar e de recorrer.
       Com efeito, na acção administrativa comum estes são chamados ao processo conforme os termos da regra geral do artigo 10º, nº 1, do CPTA, na acção administrativa especial, o legislador vem dar maior densidade ao conceito de legitimidade passiva. Este alargamento da legitimidade é notável se observamos aquilo que a LPTA consagrava neste sentido[5]. Desta forma, deram-se então novos passos no sentido da protecção dos interesses de terceiros, que já não são apenas os beneficiários directos da actuação administrativa, mas os portadores de um direito ou interesse próprio, eventualmente conflituante como daquele. Ora, supera-se assim, o esquema clássico bilateral baseado apenas na regulamentação interesse público e interesse privado. O contencioso adquire, por conseguinte, a dimensão subjectiva preconizada, entre nós, por Vasco Pereira da Silva. De igual alargamento da legitimidade, sofre o artigo 40º, nº 1. Também nesta matéria, terceiros fora da relação contratual podem propor as respectivas acções tendentes à anulação do contrato.
         Por fim cabe ainda referir mais dois artigos: o artigo 161º, quanto aos efeitos da sentença e o artigo 176º, em relação ao prazo de execução voluntária. Enquanto o primeiro, prevê que dentro de certos condicionamentos sobretudo dirigidos à protecção de terceiros, os efeitos de uma sentença transitada em julgado que tenha anulado um acto administrativo desfavorável pode ser estendido a outras pessoas que se encontrem na mesma situação jurídica, o segundo, altera o enquadramento jurídico do dever de executar, alargando o prazo de execução voluntária de um para três meses. Contudo, neste último o aspecto principal está em permitir que o particular possa fazer valer o seu direito à execução perante o tribunal. Tal transmite, de forma notória, que o processo de execução condiciona a oponibilidade do direito à execução como forma de assegurar a efectiva tutela jurisdicional que os particulares têm direito, relevando-se a aplicação do princípio de igualdade consagrado no já comentado artigo 6º do CPTA.
         Perante tal explanação, apercebe-se dos passos importantes do legislador na consagração da igualdade das partes no contencioso administrativo português. Estando assegurada a igualdade em sentido formal, cabe agora ao juiz administrativo materializá-la no evoluir do processo. A introdução do princípio de ponderação de interesses no contencioso administrativo e a sua consideração, ao longo do processo decisório, irá permitir ao juiz fazer uma composição materialmente justa dos vários interesses, quer públicos, quer privados, que se confrontem em juízo. 

Bibliografia:

· ALMEIDA, Mário Aroso de, “O Novo Regime do Processo dos Tribunais Administrativos”, Almedina, 2005.
·     ANDRADE, Vieira de, “A justiça administrativa – Lições, Almedina, 2009.
·    CANOTILHO, José Joaquim Gomes, “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”. Coimbra, Almedina, 1995.
·     DIAS, José Figueiredo, “Tutela ambiental e contencioso administrativo: da legitimidade processual e das suas consequências”, Coimbra, 1997.
·    JORDÃO, Teresa, “A igualdade das partes no contencioso administrativo (das relações jurídicas bilaterais às relações jurídicas multilaterais)”, Lisboa, 2005.
·   SILVA, Vasco Pereira da, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”. Almedina, 2005.





[1] CANOTILHO, J.J Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1995, pág.403
[2] O legislador veio ainda permitir a modificação objectiva da instância na acção de impugnação de acto pré-contratual, se o contrato vier a ser celebrado na pendência do processo urgente.
[3] No fundo, violação do direito do demandante e da consequente necessidade da sua reintegração.
[4] CPTA admite que, lei especial confira legitimidade a outras autoridades para a impugnação de actos, em defesa da legalidade administrativa – 55°, n° 1, alínea e).
[5] A LPTA definia como contra interessados apenas aqueles a quem o provimento do recurso podia directamente prejudicar.





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