Como sabemos, o princípio da
igualdade assume relevo enquanto princípio de igualdade de oportunidades,
acesso à justiça em condição igualitária e de condições reais de vida[1]. E
esta igualdade deve-se verificar não só perante a lei, mas identicamente
perante o Direito, a justiça e os escopos sociais e políticos. No fundo,
perante as dimensões valorativas do Direito. Ora, sendo assim, cumpre
reconhecer os elementares passos que o legislador tomou na sua consagração no
âmbito do contencioso administrativo. Com efeito, tal indagação será realizada neste
texto de investigação, onde determinados artigos do CPTA, nomeadamente quanto à
matéria da legitimidade e das suas especificidades em cada uma das acções,
serão analisados.
Diante da reforma do contencioso
administrativo, cuja igualdade se verifica como um dos objectivos centrais, é
desde logo de referir o artigo 6º do CPTA, que se pode reconduzir a outros dois
princípios: o princípio do contraditório e o princípio da igualdade de armas no
processo administrativo. Este artigo, que assegura a igualdade de partes em
sentido formal, vem erradicar a prática tradicional de que as entidades não
podiam ser objecto de sanção no contencioso administrativo por litigância de
má-fé. Tal não acontecia na lei anterior, nem na verdade estava sempre na
prática dos tribunais administrativos. Actualmente, estando tal realidade
consagrada, cabe ao juiz administrativo materializar esta ideia e ponderar os
interesses que estão em jogo ao longo do processo, permitindo uma composição
materialmente justa das várias pretensões que se confrontem em juízo.
Pretensões, essas, que nos levam até à matéria da legitimidade, que apresenta
realmente algumas singularidades em cada uma das diferentes acções. Assim, na
acção administrativa comum, para além dos sujeitos processuais tradicionais, o
CPTA vem alargar o âmbito da legitimidade activa nas acções relativas a
contratos. Permite-se agora que terceiros fora da relação contratual proponham
as respectivas acções tendentes à anulação do contrato[2]. O
alargamento da legitimidade activa abrange também as acções relativas à
execução de contratos, previstas no n° 2 do artigo 40°. Na acção de simples
apreciação, a demonstração da titularidade conferindo tutela a quem demonstre
interesse em agir é prescindível. Já no que diz respeito à acção de condenação
de particulares, exige-se a demonstração desse interesse, resultante de uma
situação de inadimplência[3].
Exige-se igualmente que haja uma ofensa directa dos direitos ou interesses do
particular ou entidade pública. Aqui reconhece-se claramente a presença de uma
relação jurídica complexa, que nasce de um vínculo jurídico-administrativo, que
visa proteger a posição jurídica dos particulares ou um interesse geral da
sociedade.
No âmbito da acção administrativa
especial de referir a acção de impugnação de actos administrativos, prevista no
artigo 55°, n° 1, alínea a), que concretiza, sem dúvida nenhuma, o princípio da
tutela jurisdicional efectiva. Quanto aos critérios de legitimação processual
(interesse directo e pessoal) devem ser entendidos de forma ampla, tendo em
conta o disposto do artigo 266°, n° 1 da CRP. Enquanto interesse directo
significa que o prejuízo ou a lesão não deva ser tida como eventual, mas sim
actual, o interesse pessoal traduz a ideia que do acto tem de resultar uma
lesão individualizável de direitos ou interesses legalmente protegidos. Este
interesse deixa de ser pessoal, nas palavras de Marcello Caetano, quando é
genérico. No fundo, da colectividade em geral ou de uma comunidade inteira.
Para além da tutela destes interesses, de referir ainda que o CPTA veio
reconhecer a importância emergente dos interesses colectivos, tal como podemos
observar no artigo 55°, n° 1, alínea c). Por fim, é ainda de ter em conta a
acção de condenação à prática de acto administrativo legalmente devido, em que
se adopta uma regra de legitimidade mais restrita. Ao contrário do que sucedia
com a impugnação de actos, esta exige que o autor tenha uma pretensão válida
perante a Administração, que lhe advém do acto ter sido indevidamente omitido
ou recusado. Segundo Mário Aroso de Almeida, a legitimidade para pedir esta
condenação pressupõe, a própria legitimidade para requerer a prática do
acto.
Para além destas questões, é ainda
de ter em conta a legitimidade processual activa dos titulares da acção pública
e da acção popular. No que toca à primeira, o seu exercício compete
principalmente ao Ministério Público (221°, n°1 da CRP)[4].
No âmbito da intervenção do Ministério Público, antes da reforma do contencioso
administrativo, este só interviria como defensor da legalidade nos casos em que
seria parte ou em representação do Estado. Após a reforma, é lhe conferida a
possibilidade de intervenção processual num único momento da acção
administrativa especial, sendo-lhe reconhecidas as competências para se
pronunciar sobre o mérito da causa e solicitar a realização de diligências
instrutórias (artigo 85º do CPTA). Pretende-se que a sua pronúncia tenha como
objectivo a defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses
públicos especialmente relevantes, dos valores constantes do nº 2 do artigo 9º
do CPTA e a identificação de vícios de inexistência ou nulidade quanto aos actos
que tenham sido objecto de impugnação contenciosa. Na verdade, com a Reforma, o
Ministério Público perde algum excesso de protagonismo, nas palavras de Vasco
Pereira da Silva, o que contribui para o tendencial equilíbrio dos poderes dos
intervenientes processuais. Quanto à acção popular, prevista no artigo 52°, n°3
da CRP, assegurada na Lei 83/95, de 31 de Agosto e no n° 2 do artigo 9° do
CPTA, cabe apenas mencionar que traduz uns interesses dissemelhantes dos
referidos precedentemente a propósito das acções para defesa de direitos.
Estamos agora perante um interesse cuja existência é preconcebida abstractamente
pela lei em certo número de pessoas convenientemente determinadas e com características
bem definidas.
A par desta relação, de considerar
ainda uma relação jurídica triangular, em que se considera, destinatário,
Administração e terceiros. Tal não pode ser ignorado, pois a verdade é que
começam, cada vez mais, a surgir lesados que não sendo destinatários dos actos
administrativos em causa, invocam prejuízos provocados por esses mesmos actos.
Esta intervenção é assim entendida como decorrente do princípio da igualdade,
onde se reconhece a sua legitimidade processual e uma posição completamente
independente. Deste modo, de acordo com o artigo 9º e 10º do CPTA, podemos
mesmo afirmar que com a reforma de 2004 se procedeu mesmo a um alargamento do
número de pessoas que podem reagir contra as actuações administrativas lesivas
dos seus direitos subjectivos. Os contra interessados devem ter os direitos e
deveres processuais iguais aos da entidade demandada, nomeadamente o direito de
contestar e de recorrer.
Com efeito, na acção administrativa
comum estes são chamados ao processo conforme os termos da regra geral do
artigo 10º, nº 1, do CPTA, na acção administrativa especial, o legislador vem
dar maior densidade ao conceito de legitimidade passiva. Este alargamento da
legitimidade é notável se observamos aquilo que a LPTA consagrava neste sentido[5].
Desta forma, deram-se então novos passos no sentido da protecção dos interesses
de terceiros, que já não são apenas os beneficiários directos da actuação
administrativa, mas os portadores de um direito ou interesse próprio,
eventualmente conflituante como daquele. Ora, supera-se assim, o esquema
clássico bilateral baseado apenas na regulamentação interesse público e
interesse privado. O contencioso adquire, por conseguinte, a dimensão
subjectiva preconizada, entre nós, por Vasco Pereira da Silva. De igual
alargamento da legitimidade, sofre o artigo 40º, nº 1. Também nesta matéria,
terceiros fora da relação contratual podem propor as respectivas acções
tendentes à anulação do contrato.
Por fim cabe ainda referir mais dois
artigos: o artigo 161º, quanto aos efeitos da sentença e o artigo 176º, em
relação ao prazo de execução voluntária. Enquanto o primeiro, prevê que dentro
de certos condicionamentos sobretudo dirigidos à protecção de terceiros, os
efeitos de uma sentença transitada em julgado que tenha anulado um acto
administrativo desfavorável pode ser estendido a outras pessoas que se
encontrem na mesma situação jurídica, o segundo, altera o enquadramento
jurídico do dever de executar, alargando o prazo de execução voluntária de um
para três meses. Contudo, neste último o aspecto principal está em permitir que
o particular possa fazer valer o seu direito à execução perante o tribunal. Tal
transmite, de forma notória, que o processo de execução condiciona a
oponibilidade do direito à execução como forma de assegurar a efectiva tutela
jurisdicional que os particulares têm direito, relevando-se a aplicação do
princípio de igualdade consagrado no já comentado artigo 6º do CPTA.
Perante tal explanação, apercebe-se dos
passos importantes do legislador na consagração da igualdade das partes no
contencioso administrativo português. Estando assegurada a igualdade em sentido
formal, cabe agora ao juiz administrativo materializá-la no evoluir do
processo. A introdução do princípio de ponderação de interesses no contencioso
administrativo e a sua consideração, ao longo do processo decisório, irá
permitir ao juiz fazer uma composição materialmente justa dos vários
interesses, quer públicos, quer privados, que se confrontem em juízo.
Bibliografia:
· ALMEIDA,
Mário Aroso de, “O Novo Regime do
Processo dos Tribunais Administrativos”, Almedina, 2005.
· ANDRADE,
Vieira de, “A justiça administrativa – Lições, Almedina, 2009.
· CANOTILHO,
José Joaquim Gomes, “Direito
Constitucional e Teoria da Constituição”. Coimbra, Almedina, 1995.
· DIAS,
José Figueiredo, “Tutela ambiental e contencioso
administrativo: da legitimidade processual e das suas consequências”,
Coimbra, 1997.
· JORDÃO,
Teresa, “A igualdade das partes no
contencioso administrativo (das relações jurídicas bilaterais às relações
jurídicas multilaterais)”, Lisboa, 2005.
· SILVA,
Vasco Pereira da, “O Contencioso Administrativo
no Divã da Psicanálise”. Almedina, 2005.
[1]
CANOTILHO, J.J Gomes.
Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1995,
pág.403
[2] O legislador veio ainda permitir
a modificação objectiva da instância na acção de impugnação de acto
pré-contratual, se o contrato vier a ser celebrado na pendência do processo
urgente.
[3] No fundo, violação do direito do
demandante e da consequente necessidade da sua reintegração.
[4]
CPTA admite que, lei
especial confira legitimidade a outras autoridades para a impugnação de actos,
em defesa da legalidade administrativa – 55°, n° 1, alínea e).
[5]
A LPTA definia como contra
interessados apenas aqueles a quem o provimento do recurso podia directamente
prejudicar.
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