quarta-feira, 16 de maio de 2012

O poder discricionário da Administração




1.     Preliminares

A Administração está sujeita ao princípio da legalidade mas nem sempre a lei regula do mesmo modo os actos a praticar pela Administração, pormenorizando algumas situações e deixando outras em aberto para que a Administração determine a consequência.
Os impostos são um exemplo em que a lei pormenoriza a acção administrativa.  A lei aqui regula todos os aspectos da acção administrativa, ou seja, a lei vincula totalmente a Administração – actos vinculados.
Mas existem casos em que a lei praticamente nada regula e atribui uma margem de autonomia à Administração, decidindo esta de acordo com critérios adequados à prossecução do interesse público – actos discricionários.
Em bom rigor, os actos administrativos nunca são totalmente vinculados ou totalmente discricionários.  Pegando no exemplo dos impostos, a vinculação é quase total mas ainda assim há discricionariedade quanto aos prazos para a Administração praticar os actos. E, o fim do acto administrativo é sempre vinculado e quando o mesmo não é prosseguido, a acto diz-se ilegal.

2.     Natureza

A discricionariedade é o poder de escolha entre várias alternativas. Mas será essa escolha livre?
Segundo Afonso Queiró, o poder discricionário é uma atribuição do poder de escolha  feita pelo legislador à Administração.  Freitas do Amaral chegou a concordar com esta posição mas actualmente defende que a Administração está adstrita a encontrar a melhor solução para o interesse público e que a discricionariedade é um poder-dever jurídico imposto pelo dever de boa administração.
Engisch refere que o poder de escolha conferido à Administração segue o resultado da decisão que é o único ajustado.  E, segundo Vieira de Andrade, a discricionariedade não é uma liberdade e sim uma competência, uma função jurídica.


3.     Fundamento


As leis não podem ser uma figuração abstracta do que irá ser cada um dos actos administrativos.
O poder discricionário visa assegurar o tratamento equitativo dos casos individuais  e tem fundamento no princípio da separação de poderes. E, só há poder discricionário na medida em que a lei o confere, só pode ser exercido por aqueles a quem a lei atribuir este poder e sempre respeitando o fim com que a lei o confere.
O poder discricionário não é uma excepção ao princípio da legalidade, é antes uma das formas possíveis de estabelecer a subordinação da Administração à lei.

4.     Âmbito

Coloca-se a questão de saber o que é discricionário num acto administrativo.  Podem-se apontar os seguintes aspectos que são discricionários:
1)   O momento da prática do acto;
2)   A decisão de praticar ou não um certo acto;
3)   Determinação dos factos e interesses relevantes para a decisão ( o legislador não define os pressupostos abstractamente; é necessário concretizar o interesse público em cada caso);
4)   Determinação do conteúdo concreto da decisão a tomar – discricionariedade de escolha);
5)   A forma a adoptar para o acto;
6)   Formalidades a observar na preparação e na prática do acto;
7)   Fundamentação da decisão quando a lei assim o impõe ( art. 124.º do CPA). Quando a lei não impõe fundamentação, a decisão de fundamentar o acto é discricionária;
8)   Faculdade de opor condições, termos, modos e outras cláusulas acessórias no acto (art. 121.º do CPA).

5.     Limites

Os limites ao poder discricionário ocorrem por duas formas: limites legais e auto-vinculação.
Os limites legais resultam da própria lei.
Quanto à auto-vinculação importa saber que a lei confere à Administração o exercício dos poderes discricionários de duas formas:
a)    caso a caso, de acordo com o interesse público;
b)   com base numa previsão do que poderá acontecer ou de acordo com uma experiência sedimentada de exercício dos seus poderes, elaborando normas genéricas e enunciando critérios a que a própria Administração obedecerá.

A jurisprudência entende que quando a Administração se auto-vincula, está obrigada ao que decidiu submeter-se. E, caso contrarie essas normas, esse acto será ilegal porque viola normas estabelecidas pela Administração que são uma auto-vinculação do seu poder discricionário – princípio da inderrogabilidade singular dos regulamentos.
Mas, note-se que a Administração não está obrigada a decidir sempre com base em critérios imutáveis, pois o CPA admite que a Administração decida de modo diferente na lógica do interesse público que é eminentemente variável (art. 124.º, n.º 1, al. d) do CPA).
Mas a possibilidade de auto-vinculação pública não é ilimitada: não pode violar o disposto no art. 112.º, n.º 5 da CRP e quando a lei impõe casuísmo, a auto-vinculação será ilegal.

6.     Controlo

O controlo de legalidade determina se a Administração respeitou ou violou a lei.  Este pode ser feito pelo tribunais e pela Administração.
O controlo de mérito avalia o fundamento das decisões e só pode ser feito pela Administração.  O mérito do acto administrativo reconduz-se a uma ideia de justiça (adequação ao interesse público que o acto visa prosseguir e os interesses legalmente protegidos) e conveniência (harmonia entre o interesse público e os demais interesses públicos afectados pelo acto).
O uso de poderes vinculados ilegais é objecto de controlo de legalidade.
O uso de poderes discricionários inconvenientes e injustos é objecto de controlo de mérito.
Quando os poderes sejam em parte vinculados e em parte discricionários, o seu exercício ilegal está sujeito ao controlo de legalidade e o seu mau uso está sujeito ao controlo de mérito.
Quanto à impugnação de actos discricionários, os mesmos podem ser atacados contenciosamente com base nestes fundamentos:
a)    incompetência;
b)   vício de forma (em particular, por falta de fundamentação);
c)    violação da lei (ofensa aos limites impostos ao poder discricionário; violação de princípios constitucionais da igualdade, proporcionalidade, boa fé, justiça, imparcialidade);
d)   defeitos de vontade (erro de facto).

Por fim, resta referir que, segundo Freitas do Amaral, a única forma eficaz de controlo efectivo do exercício do poder discricionário da Administração está no aumento do número de vinculações legais.




    
  • ENGISCH, Karl, "Introdução ao Pensamento Jurídico", Fundação Calouste Gulbenkian;
  • FREITAS DO AMARAL, Diogo, "Curso de Direito Administrativo", Vol. II, Almedina;
  • QUEIRÓ, Afonso, "Os limites do poder discricionário das autoridades administrativas", Coimbra, 1966;
  • VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, "O Ordenamento Jurídico-administrativo Português" in Contencioso Administrativo, Braga, 1986

Sem comentários:

Enviar um comentário