domingo, 20 de maio de 2012

Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo do processo nº 01078/11, de 14 de Dezembro de 2011


Resumo do acórdão:

      Esta decisão do Supremo Tribunal Administrativo (doravante, STA) versa sobre três matérias, interligando-as intimamente. São elas: intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias (DLG, daqui em diante), providência cautelar e acção administrativa especial de condenação à prática de acto administrativo devido. Neste acórdão, discute-se qual destes meios processuais seria o adequado para analisar a questão suscitada pela requerente.

      A requerente é Magistrada do Ministério Público, exercendo funções como Procuradora-Adjunta na Comarca X, nos dias úteis. Exerce ainda funções em regime de turnos para assegurar o serviço urgente previsto no Código de Processo Penal, na Lei de Saúde Mental e na Lei Tutelar Educativa que deve ser executado aos sábados, nos feriados que recaiam em segunda-feira e no 2.º dia feriado, em caso de feriados consecutivos.

      Pretendendo a dispensa de todos os turnos que lhe fossem atribuídos ao Sábado e a possibilidade de os compensar noutros dias da semana, a autora requereu a apreciação deste pedido ao seu superior hierárquico. Porém, a pretensão foi indeferida por Acórdão do Conselho Superior do Ministério Público. A fundamentação dada foi a de que as funções por ela exercidas, na qualidade de Procuradora-Adjunta não correspondiam a um horário de trabalho flexível, previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º da Lei de Liberdade Religiosa (LLR, aprovada pela Lei n.º 16/2001, de 22 de Junho).

      A autora alegou que esta interpretação do artigo 14.º da LLR era inconstitucional, pelo que o acórdão seria nulo, nos termos da alínea d) do n.º 2 do artigo 133.º do Código do Procedimento Administrativo, por ofender o conteúdo essencial de um direito fundamental, e que o próprio nº 1 do artigo em causa ofendia o conteúdo de direitos, liberdades e garantias e outras normas constitucionais, sendo também materialmente inconstitucional por ofensa ao disposto nos artigos 41.º, 47.º, n.º 1 e 13.º da Constituição da República Portuguesa (CRP, daqui em diante).

      Perante estes argumentos, o Conselho Superior do Ministério Público contestou, afirmando que o meio processual utilizado pela requerente não era o adequado, uma vez que não era necessária uma decisão de mérito de carácter tão célere, pois o objectivo pretendido podia ser alcançado “pelo decretamento de uma providência cautelar antecipatória cumulada com a propositura da correspondente acção administrativa especial de condenação ao acto devido”.

      O Conselho Superior do Ministério Público afirmou ainda que, se se considerasse que a situação era deveras urgente e, por isso, impunha a instauração de uma intimação ao abrigo do disposto no art.º 109.º do CPTA (Código de Processo dos Tribunais Administrativos), deveriam ser chamados todos os Magistrados que pudessem vir a ser afectados pela decisão a proferir. Se o Tribunal considerasse, no entanto, que a intimação não era o meio adequado, mas sim a providência cautelar antecipatória, o Conselho Superior do Ministério Público considerava que não se encontravam verificados os pressupostos exigidos no art.º 120.º do CPTA, nomeadamente, porque a pretensão da requerente iria colidir com “direitos de terceiros com tanta ou maior relevância”.

      Perante este litígio, o Tribunal começou por analisar se a intimação para protecção de DLG seria o meio adequado para tutelar o direito alegado pela requerente. A conclusão a que chegou foi a de que não seria, uma vez que este meio processual, de acordo com o artigo 109º, nº1 do CPTA, é um meio subsidiário, ao qual só deve recorrer-se quando se demonstre que uma providência cautelar com a respectiva acção principal não seriam idóneas para efectivar a tutela suscitada. A Doutrina (o Professor Doutor Mário Aroso de Almeida, por exemplo) entende que este procedimento é subsidiário, tal como se retira da lei. O Supremo Tribunal Administrativo concluiu que o direito à liberdade religiosa alegadamente violado, de acordo com a requerente, por lhe estar a ser impedido o culto da sua religião ao Sábado, seria correctamente tutelado, in casu, por meio de uma providência cautelar e respectiva acção principal (acção administrativa especial de condenação à prática do acto devido).

      Depois de assente este ponto da questão, o STA avançou para a análise do pedido subsidiário de procedência da providência cautelar antecipatória de acção de condenação à prática do acto devido. O STA referiu que o deferimento da providência cautelar apenas teria lugar se se verificasse a existência de uma de duas circunstâncias: ser “evidente a procedência da pretensão formulada ou a formular no processo principal” ou existir “fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente pretende ver reconhecidos no processo principal e seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente”, de acordo com o disposto nos nº 1, alíneas a) e c) do artigo 120º do CPTA. O STA alertou ainda que mesmo que algum destes pressupostos se verificasse, não seria certa a procedência da providência cautelar. Isto verifica-se, pois a providência deve ser indeferida quando a ponderação dos interesses públicos e privados em conflito demonstre que os danos decorrentes do deferimento da providência fossem superiores aos danos causados pelo acto, no presente ou no futuro, conforme dispõe o artigo 120º, nº2 do CPTA.

      O STA considerou que não se encontrava preenchido o requisito do artigo 120º, nº 1, alínea a) do CPTA, pois não é possível averiguar se é evidente a procedência da acção ou não, uma vez que não se afigura razoável verificar numa acção urgente e célere como uma providência cautelar, se o conteúdo do direito à liberdade religiosa da requerente é atingido ou não. Sendo uma questão de sensibilidade e importância elevadas, é necessária uma análise cuidada, que não pode ser garantida num procedimento cautelar.

      De acordo com o exposto, o Tribunal retirou a conclusão de que os pressupostos de procedência da providência cautelar antecipatória de acção administrativa especial de condenação à prática do acto devido não se encontravam verificados. Desta forma, o STA indeferiu os pedidos e condenou a requerente ao pagamento das custas do processo.



Comentário:


      Em primeiro lugar, faremos uma breve introdução, na qual especificaremos os conceitos presentes neste acórdão.

      Devemos ter em mente que a intimação para protecção de DLG é um procedimento subsidiário, tal como o STA frisou, e que visa assegurar o exercício de um DLG para o qual seja absolutamente necessária uma decisão de mérito que decrete uma conduta positiva ou negativa da Administração, quando a procedência de uma providência cautelar não seja suficiente ou possível, de acordo com o artigo 131º do CPTA (artigo 109º do CPTA). Os Professores Doutores Mário Aroso de Almeida e Fernandes Cadilha explicitam esta subsidiariedade: a intimação é um meio processual “(…) vocacionado para intervir como uma válvula de segurança do sistema de garantias contenciosas, nas situações - e apenas nessas - em que as outras formas de processo do contencioso administrativo não se revelem aptas a assegurar a protecção efectiva de direitos, liberdades e garantias.” (in Comentário ao Código de Processo dos Tribunais Administrativos, 2ª Edição, anotação ao artigo 109º).

      A providência cautelar, antecipatória de acção principal como sempre tem de ser (artigos 383º, nº1 do Código de Processo Civil e 113º, nº 1 do CPTA), é um procedimento urgente que pretende a regulação provisória de uma situação jurídica, para que possa ser efectivado o exercício de um determinado direito, de forma célere, até que seja decidida como procedente ou improcedente a causa principal a que está adjacente (artigos 381º, nº 1 e 382º, nº 1 do Código de Processo Civil e artigos 112º, nº 1 e 113º, nº 1 e 2 do CPTA).

      Por fim, cabe definir acção administrativa especial de condenação à prática de acto devido. Conforme dispõe o artigo 66º, nº 1 do CPTA, esta acção é aquela que visa obter uma decisão de mérito que imponha à entidade competente a prática de um acto administrativo que tenha sido recusado ou omitido, ilegalmente. O Professor Doutor Vasco Pereira da Silva define-a como uma acção administrativa especial na qual se pretende obter a condenação da entidade competente à prática de um acto que ilegalmente omitiu ou recusou, na perspectiva do autor.

      Tendo, agora, em mente todos estes conceitos, poderemos analisar a decisão do acórdão e os seus fundamentos.

      Concordamos com o STA quando este afirma que a intimação não é o meio processual adequado para apreciar o pedido da requerente, pois, tal como este Tribunal entendeu, esta forma processual é subsidiária, só devendo ser intentada quando o procedimento cautelar cumulado com a acção principal que lhe seja correspondente se demonstre inadequada. Como, neste caso, é possível recorrer ao procedimento cautelar, pois a urgência da questão não é tal que possa ser prejudicada por ser intentada a providência, concluímos que a intimação não procede.

      A providência cautelar antecipatória de acção administrativa especial de condenação à prática do acto devido (de atribuir à requerente turnos que não coincidissem com o dia de Sábado) não seria igualmente, contudo, adequada para conhecer do pedido, uma vez que falta o requisito do periculum in mora. Este requisito, previsto no artigo 381º, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC), pressupõe que exista um perigo eminente ou uma violação de um direito já a decorrer, que exijam que se actue de forma célere para evitar que se “cause lesão grave e dificilmente reparável”. Ora, no caso em apreço, não podemos considerar que o facto de a requerente não poder exercer a prática religiosa aos Sábados seja um dano grave e de difícil reparação. O culto religioso pode ser realizado em qualquer altura, sem que isso provoque um grande prejuízo para a pessoa.

      Por seu lado, o requisito de fumus boni iuris encontrava-se preenchido, pois a requerente tinha um “fundado receio” de que o seu direito seria posto em causa, por ter tido conhecimento do indeferimento do seu requerimento por parte do Conselho Superior do Ministério Público. No entanto, este facto não é relevante, pois os requisitos da providência cautelar são cumulativos.

      Existe ainda um terceiro requisito que a Doutrina refere, nomeadamente, o Professor Doutor Miguel Teixeira de Sousa, que é a existência de interesse processual. Considerando que a requerente coloca uma questão relativa a um direito fundamental que lhe pertence, temos de concluir que este requisito se verifica.

      Porém, não se verificando o primeiro requisito, não é relevante verificar-se se estão preenchidos o segundo e terceiro, porque a providência continua a não poder ser intentada, uma vez que os mesmos são cumulativos.

      A requerente não poderia, desta forma, recorrer aos processos urgentes para ver tutelada a sua situação, devendo, ao invés, intentar a acção principal apenas, na qual cumulava a acção de impugnação de acto administrativo e a acção de condenação à prática do acto devido.

      Para além destas acções, para que visse correctamente salvaguardado o seu direito, a requerente poderia ter intentado, igualmente, uma acção de condenação à abstenção de prática de acto lesivo, para impedir que, mais tarde, lhe fossem agendados turnos para Sábados. Esta acção segue a forma de processo comum, nos termos do artigo 37º, nº 1 e nº 2, alínea c) do CPTA, porque não está prevista como sendo uma acção que segue forma especial e tem por objecto a condenação da Administração à abstenção de prática de um acto lesivo de um direito.

      Relativamente à pretensão da requerente de que não lhe sejam agendados turnos para os dias de Sábado, por este ser o dia semanal em que os crentes da Igreja Adventista do Sétimo Dia descansam do trabalho, dedicando-o à prática religiosa, esta relaciona-se, de facto, com o direito à liberdade religiosa consagrada no artigo 41º, nº 1 e 2 da CRP. É, no entanto, discutível e muito complexo, aferir se o conteúdo deste direito é atingido pela decisão do Conselho Superior do Ministério Público.

      Parece-nos, tal como pareceu ao Tribunal, que isto não acontece, uma vez que a fixação dos turnos da requerente para os dias de Sábado não impede a sua prática religiosa, apenas não permitindo que a mesma efectue o descanso e prática religiosas nesses dias em concreto. Para que a requerente possa, livremente, seguir as regras da sua religião, não é imperativo que tenha de o fazer naqueles dias, embora eles tenham um determinado significado. Além deste facto, a procedência deste pedido da requerente, iria implicar uma recalendarização dos turnos da função que ela desempenha, o que significaria criar um conflito com os direitos e interesses das restantes pessoas que exercessem essa função.

      O Estado Português é laico (artigo 41º, nº 4 da CRP), o que significa que não tem qualquer religião oficial. Como vivemos em Estado de Direito Democrático, acresce a este facto o de que a liberdade de religião é um DLG, uma vez que se encontra consagrado no Capítulo I do Título II da CRP. Porém, esta liberdade, tal como todas as que o Direito protege e tutela, tem os seus limites, que são os restantes direitos liberdades e garantias e o interesse público. Tem sempre de ser feita uma ponderação de direitos e interesses, nestas situações de conflito. Neste caso, o direito à liberdade religiosa, ou melhor, à sua prática, por um lado, e ao princípio da igualdade dos outros trabalhadores daquela função e ao interesse público (devido à função em causa), por outro lado.

      Se considerarmos as práticas religiosas da religião de cada cidadão ao fixar o seu horário e calendário laboral, iremos deparar-nos com impossibilidades práticas de compatibilização das mesmas.

      Analisadas todas estas perspectivas, somos obrigados a retirar a conclusão de que a pretensão da requerente não poderia proceder em sede de providência cautelar, nem em sede de acção principal.

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