“Tribunais Administrativos como Tribunais
comuns?”
Breve
análise: Jurisdição Administrativa VS Jurisdição Cível
Importa, em primeiro lugar, explicar um pouco da diferença entre
estas duas jurisdições: enquanto na jurisdição cível o ponto dominante incide
no facto de se tratarem litígios entre particulares - ex. o arrendatário que
entra em litígio com o senhorio, o proprietário com o vizinho, o marido com a
mulher, o sócio com a sociedade, etc., na jurisdição Administrativa o que está
em causa são litígios que opõem os interesses de um particular a um poder público, ou seja, ao invés do
primeiro caso, não estão aqui em análise conflitos entre os particulares mas
antes actuações dos entes públicos susceptíveis de violar os Direitos dos
cidadãos. O cidadão ao sentir-se lesado pelo poder público tem de ter
obviamente maneira de reagir, procurando claro está, ou a prevenção de uma
possível lesão ou, quando tal já não seja possível, a reparação das lesões
existentes.
Esta solução é facilmente compreendida à luz do Estado de Direito em
que vivemos e, nomeadamente, atendendo ao princípio importantíssimo e
Constitucionalmente consagrado da separação de poderes; não seria admissível
concentrar na Administração o poder de decidir sem que a essa decisão pudessem
os sujeitos afectados reagir, daí que todos os cidadãos tenham direito a aceder
aos tribunais para conseguir a reparação dos seus Direitos, ou mesmo a
prevenção de tal lesão, obstando à prévia actuação da Administração.
Do princípio acima enunciado, decorre igualmente
a exigência de Tribunais independentes e imparciais para a administração da
justiça que assim levarão à correcta prossecução dos interesses públicos.
Contudo esta concepção torna-se insuficiente para caracterizar a actuação da
Administração Pública, pois ao longo dos tempos, a Administração foi crescendo
quanto ao seu âmbito e tornou-se como que “independente”, no sentido de que ela
própria define os seus fins de actuação, executando as suas próprias decisões.
Ora, com base no argumento que já usámos atrás, de que vivemos efectivamente
num Estado de Direito não faria sentido admitir a actuação arbitrária da
Administração, pois embora ela possa verdadeiramente ponderar os interesses em
jogo e tomar a melhor decisão, a verdade é que em prol do interesse público a
Administração pode mesmo tomar decisões que, directa ou mesmo indirectamente,
afectem outros sujeitos, nomeadamente, os particulares. Posto isto, está então
justificada a necessidade de actuação dos Tribunais Administrativos como tribunais
“especializados”, não no sentido próprio da palavra, mas no sentido de ser o
Tribunal que melhor poderá analisar as questões em causa. Cabe-me aqui tomar posição e, de acordo com a que é propugnada pelo Prof.
Vieira de Andrade e que entendo ser a melhor, será admissível a adopção de um
sistema de “cláusula geral” para os tribunais administrativos (prevista no
art.212/3 CRP); note-se que não se pretende com isto estabelecer uma reserva material
absoluta relativamente a estes Tribunais. Deve antes entender-se que o que se
encontra no preceito constitucional supra citado é uma garantia institucional,
da qual deriva unicamente o dever de respeito do núcleo essencial da
organização material das jurisdições por parte do legislador ordinário. Neste
sentido, não ficará proibida a atribuição, embora pontual, a outros tribunais
do julgamento de questões materialmente administrativas.
Parece-me então que o art.212º/3 apenas consagra os tribunais administrativos como os tribunais
comuns em matéria administrativa, ou seja, os Tribunais têm competência
para conhecer de todos os litígios decorrentes de relações jurídicas
administrativas que expressamente não estejam excluídos ou atribuídos por lei a
outra jurisdição. Nas palavras dos Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “a
competência dos tribunais administrativos deixou de ser especial ou excepcional
face aos tribunais judiciais, tradicionalmente considerados como tribunais
ordinários ou comuns”.
De igual modo, este entendimento esteve na base da Reforma
legislativa de 2002, através da qual se procedeu a uma redefinição da
jurisdição administrativa de forma não inteiramente coincidente com a definição
substancial da justiça administrativa constitucionalmente determinada.
Assim, atendendo à Reforma a que se procedeu relativamente à
organização judiciária administrativa em 2002 e que entrou em vigor em 2004 -
(que teve expressão através da Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro (o novo ETAF),
que foi complementado pelo Decreto-Lei nº 325/2003, de 29 de Dezembro, e
alterado pela Lei nº 107-D/2003, de 31 de Dezembro), sendo que, ao mesmo tempo,
foi introduzida uma profunda reforma do processo administrativo através da Lei
nº 15/2002 de 28 de Fevereiro, alterada, entretanto, pela Lei nº 4-A/2003, de
19 de Fevereiro, e que entrou em vigor também em 1 de Janeiro de 2004 - importa
dizer antes de mais que no final do ano de 2003 em Portugal, tínhamos apenas 3
tribunais administrativos de círculo em todo o continente.
Já a estrutura organizativa
que temos hoje, depois das significativas alterações ao ETAF, passou a ser a
seguinte:
·
16 Tribunais administrativos e fiscais (Braga,
Porto, Penafiel, Mirandela, Viseu, Coimbra, Leiria, Lisboa, Loures, Sintra, Almada,
Castelo Branco, Beja, Loulé, Funchal, Ponta Delgada);
·
2 Tribunais centrais administrativos: Norte, com
sede no Porto e Sul, com sede em
Lisboa, ambos com 2 secções;
·
Supremo Tribunal Administrativo (Lisboa), com
duas secções.
Posto isto, há que analisar o modo como estão distribuídas, entre os tribunais,
as competências para conhecimento dos litígios; podemos começar, desde já, por
dizer que todos os litígios têm de dar entrada nos tribunais de 1ª instância, dando-se
mais um importante passo no sentido de romper com a velha tradição que mandava apreciar
pelos tribunais de grau superior os litígios em que estavam envolvidas altas
autoridades. Deste modo, nos termos do artigo 44º do ETAF, “compete aos
tribunais administrativos de círculo conhecer em primeira instância, de todos
os processos do âmbito da jurisdição administrativa, com excepção daqueles cuja
competência, em primeiro grau de jurisdição, esteja reservada aos tribunais
superiores (...)”. O mesmo sucede também em regra com os tribunais tributários
de primeira instância (artigo 49.o do ETAF). Daqui decorre que a principal
tarefa das secções de contencioso administrativo do TCA do Norte e do Sul será
assim a apreciação em recurso das decisões dos tribunais administrativos de 1ª
instância. Já ao Supremo Tribunal Administrativo compete conhecer dos recursos
de revista sobre matéria de direito interpostos de acórdãos dos Tribunais
Centrais Administrativos (secções do contencioso administrativo) e ainda, em
casos especiais determinados pela lei de processo, recursos de decisões de
tribunais administrativos de círculo. O STA é ainda competente para se
pronunciar de forma vinculativa sobre uma questão de direito nova surgida num
tribunal administrativo de círculo que suscite dificuldades sérias e possa vir
a ser suscitada noutros litígios (artigo 25.o, no 2 do ETAF e artigo 93.o do CPTA).
No entanto, este reenvio prejudicial não tem lugar nos processos urgentes.
Podemos dizer que esta reforma avançou de modo decisivo e mais do que
se previa, dando dois passos importantíssimos em matéria organizatória, pois
não só agregou os tribunais administrativos e tributários de 1ª instancia,
criando uma rede que cobre todo o território nacional, como desdobrou o TCA em
dois tribunais centrais administrativos (Norte e Sul). Para além destes argumentos,
há que referir o Acórdão do Tribunal Central
Administrativo Norte de 26 de Julho de 2007 que refere expressamente o
seguinte: "O art.212.º, n.º 3 da CRP constitui uma regra definidora
dum modelo típico do âmbito da jurisdição administrativa enquanto jurisdição
própria, ordinária, e não como uma jurisdição especial ou excepcional, ou mesmo
facultativa, face aos tribunais judiciais, servindo tal preceito constitucional
para consagrar os tribunais administrativos como tribunais comuns em matéria
administrativa”;
Estão agora reunidas as condições para que possamos afirmar que os
Tribunais Administrativos funcionam como verdadeiros Tribunais comuns da acção
Administrativa. Basta verificarmos que quase todos os processos entram agora em
1ª instância nos tribunais administrativos e fiscais, que os tribunais centrais
administrativos são tribunais de 2ª instância e que o STA, fora a parte que lhe
cabe em primeira instância, é fundamentalmente um tribunal de revista, o que nos leva obrigatoriamente à conclusão
de que temos uma estrutura organizatória no seio do direito administrativo que
se aproxima inequivocamente da
organização da jurisdição ordinária comum e que é claramente a mais racional,
na medida em que temos a apreciação inicial dos litígios pelos tribunais de 1ª
instância, recurso de apelação para os tribunais centrais administrativos (2ª
instância) e recurso de revista para o STA. De
tudo isto resulta claramente que os Tribunais Administrativos são, de facto, a
“jurisdição ordinária” em matéria Administrativa.
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