Nesta
matéria, colocam-se duas dimensões no âmbito de uma mesma grande questão, que
cabe aqui apreciar: no artigo 212º, nº 3 da Constituição da República
Portuguesa (CRP) é consagrada uma reserva material absoluta de jurisdição?
Esta questão tem, portanto, uma dupla
dimensão:
1. Por um lado, só podem os tribunais
administrativos julgar questões de direito administrativo ou podem julgar
outras questões?
2. E, por outro lado, os tribunais
administrativos são os únicos a poder julgar as questões de direito
administrativo?
Tentaremos responder a estas questões
de forma breve, tendo em conta a natureza deste trabalho.
Quanto à primeira questão, a
jurisprudência do Tribunal Constitucional, na apreciação de uma questão
relativa aos tribunais militares, apontou para uma reserva negativa ou de
exclusão dos tribunais não judiciais. Os tribunais militares seriam, por isso,
tribunais especiais, pois poderiam julgar apenas as acções que lhe fossem
atribuídas pela CRP.
As leis que conferissem competência
aos tribunais administrativos para apreciar acções que não tivessem por objecto
relações jurídicas administrativas, seriam inconstitucionais, portanto.
A Doutrina tem tido o entendimento
contrário, considerando que os tribunais administrativos têm competência para
apreciar, em geral, os litígios da Administração Pública. Mesmo aqueles que
tivessem como base relações ou outros aspectos de Direito Privado, deveriam ser
dirimidos pelos tribunais administrativos, por terem a Administração como
parte. O Professor Doutor Vieira de Andrade refere que a Doutrina admitiria a
competência dos tribunais em causa para apreciar questões relativas a contratos
privados da Administração ou a responsabilidade extracontratual da mesma, por
exemplo.
Em relação à segunda dimensão da
questão, há grande cisão na Doutrina. Alguns autores consideram que a CRP
estabelece uma reserva que não permite ao legislador ordinário conferir
competência a outros tribunais que não os administrativos para apreciar
questões materialmente administrativas, apenas sendo possíveis “as devoluções
de competências em matérias administrativas para outros tribunais que forem
previstas ao nível constitucional
(por exemplo, a atribuição à jurisdição constitucional do contencioso
eleitoral), ou, excepcionalmente, em caso de estado de necessidade.” (Vieira de Andrade, Justiça Administrativa (Lições), 2011, Almedina).
Outros autores consideram aceitável a
remissão do legislador para os tribunais comuns de acções relativas a relações
jurídicas administrativas. A razão seria, nomeadamente, a de garantir uma
protecção mais intensa dos direitos em causa, o que seria muito útil em sede de
direitos fundamentais, tendo em conta que a jurisdição administrativa tem falta
de meios processuais e tribunais aptos para tutelar esses direitos.
Face a esta querela, alguma
jurisprudência considerou que o artigo em análise estabelece apenas um modelo
geral que pode ser alterado em casos especiais, desde que não seja totalmente
descaracterizado. Para esta posição, a proibição estabelecida no artigo não
seria absoluta.
O Professor Doutor Vieira de Andrade
posicionou-se quanto a estes problemas, defendendo que o artigo 212º, nº 3 da
CRP pretende estabelecer os “tribunais administrativos como os tribunais comuns em matéria administrativa.”
(Vieira de Andrade, Justiça
Administrativa (Lições), 2011, Almedina). Na visão deste Professor, foi
esta a posição tomada pela Reforma do Contencioso Administrativo de 2002, que
procedeu a uma redefinição do âmbito da justiça administrativa, não a fazendo
corresponder integralmente com o que é estipulado na CRP.
A lei auxilia-nos um pouco nesta
delimitação que pretendemos levar a cabo. O artigo 1º do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais (ETAF) considera que os tribunais administrativos são
competentes para apreciar acções decorrentes de relações jurídicas
administrativas. O artigo 4º do mesmo diploma, vem exemplificar litígios que
devem ser incluídos e litígios que devem ser excluídos do âmbito da jurisdição
administrativa, numa tentativa de mero esclarecimento da regra geral do artigo
1º e, por isso, não sendo taxativo.
Existe, também, legislação especial que
considera expressamente os tribunais comuns como competentes para apreciar
litígios de direito administrativo.
Cumpre, chegados a este momento,
tomar posição.
Relativamente à primeira dimensão da
questão, diremos que concordamos com a posição da Doutrina maioritária, que
considera os tribunais administrativos competentes para dirimir conflitos
derivados de relações administrativas e todos os que sejam de Direito Privado e
envolvam a Administração também. A fundamentação para esta posição é a de que
não podemos ignorar que a Administração, por muito que seja colocada ao nível
de um particular, tem especificidades na sua actuação que fazem com que deva
ser julgada por tribunais cientes desse facto.
Quanto à segunda questão,
colocamo-nos ao lado da segunda posição doutrinária, pois em questões
administrativas que se prendam com direitos fundamentais, é necessário garantir
a máxima protecção possível e essa protecção, na jurisdição administrativa nem
sempre é suficiente, como é sabido. Desta forma, admitimos a remissão de
determinados litígios administrativos para os tribunais comuns. Esta nossa
posição é reforçada por aquilo que a legislação ordinária estabelece, pois a
CRP pode ser um pouco equívoca, mas o ETAF e outras leis especiais são mais
claros ao estipular que os tribunais administrativos não são os únicos a ter
competência em matéria administrativa.
Em conclusão, consideramos que a
resposta à primeira dimensão da questão é que os tribunais administrativos
podem julgar questões que não surjam de relações administrativas e a resposta à
segunda questão é que existem outros tribunais competentes em matéria de
Direito Administrativo. A resposta à pergunta principal será, portanto: o
artigo 212º, nº3 da CRP não estabelece uma reserva absoluta de jurisdição
administrativa, embora assim possa parecer à primeira vista.
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