terça-feira, 22 de maio de 2012

Jurisdição Administrativa: qual o âmbito da sua reserva constitucional?



            Nesta matéria, colocam-se duas dimensões no âmbito de uma mesma grande questão, que cabe aqui apreciar: no artigo 212º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP) é consagrada uma reserva material absoluta de jurisdição?

Esta questão tem, portanto, uma dupla dimensão:

1.      Por um lado, só podem os tribunais administrativos julgar questões de direito administrativo ou podem julgar outras questões?

2.      E, por outro lado, os tribunais administrativos são os únicos a poder julgar as questões de direito administrativo?


Tentaremos responder a estas questões de forma breve, tendo em conta a natureza deste trabalho.


Quanto à primeira questão, a jurisprudência do Tribunal Constitucional, na apreciação de uma questão relativa aos tribunais militares, apontou para uma reserva negativa ou de exclusão dos tribunais não judiciais. Os tribunais militares seriam, por isso, tribunais especiais, pois poderiam julgar apenas as acções que lhe fossem atribuídas pela CRP.

As leis que conferissem competência aos tribunais administrativos para apreciar acções que não tivessem por objecto relações jurídicas administrativas, seriam inconstitucionais, portanto.

A Doutrina tem tido o entendimento contrário, considerando que os tribunais administrativos têm competência para apreciar, em geral, os litígios da Administração Pública. Mesmo aqueles que tivessem como base relações ou outros aspectos de Direito Privado, deveriam ser dirimidos pelos tribunais administrativos, por terem a Administração como parte. O Professor Doutor Vieira de Andrade refere que a Doutrina admitiria a competência dos tribunais em causa para apreciar questões relativas a contratos privados da Administração ou a responsabilidade extracontratual da mesma, por exemplo.


Em relação à segunda dimensão da questão, há grande cisão na Doutrina. Alguns autores consideram que a CRP estabelece uma reserva que não permite ao legislador ordinário conferir competência a outros tribunais que não os administrativos para apreciar questões materialmente administrativas, apenas sendo possíveis “as devoluções de competências em matérias administrativas para outros tribunais que forem previstas ao nível constitucional (por exemplo, a atribuição à jurisdição constitucional do contencioso eleitoral), ou, excepcionalmente, em caso de estado de necessidade.” (Vieira de Andrade, Justiça Administrativa (Lições), 2011, Almedina).

Outros autores consideram aceitável a remissão do legislador para os tribunais comuns de acções relativas a relações jurídicas administrativas. A razão seria, nomeadamente, a de garantir uma protecção mais intensa dos direitos em causa, o que seria muito útil em sede de direitos fundamentais, tendo em conta que a jurisdição administrativa tem falta de meios processuais e tribunais aptos para tutelar esses direitos.

Face a esta querela, alguma jurisprudência considerou que o artigo em análise estabelece apenas um modelo geral que pode ser alterado em casos especiais, desde que não seja totalmente descaracterizado. Para esta posição, a proibição estabelecida no artigo não seria absoluta.


O Professor Doutor Vieira de Andrade posicionou-se quanto a estes problemas, defendendo que o artigo 212º, nº 3 da CRP pretende estabelecer os “tribunais administrativos como os tribunais comuns em matéria administrativa.” (Vieira de Andrade, Justiça Administrativa (Lições), 2011, Almedina). Na visão deste Professor, foi esta a posição tomada pela Reforma do Contencioso Administrativo de 2002, que procedeu a uma redefinição do âmbito da justiça administrativa, não a fazendo corresponder integralmente com o que é estipulado na CRP.


A lei auxilia-nos um pouco nesta delimitação que pretendemos levar a cabo. O artigo 1º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) considera que os tribunais administrativos são competentes para apreciar acções decorrentes de relações jurídicas administrativas. O artigo 4º do mesmo diploma, vem exemplificar litígios que devem ser incluídos e litígios que devem ser excluídos do âmbito da jurisdição administrativa, numa tentativa de mero esclarecimento da regra geral do artigo 1º e, por isso, não sendo taxativo.

Existe, também, legislação especial que considera expressamente os tribunais comuns como competentes para apreciar litígios de direito administrativo.

Cumpre, chegados a este momento, tomar posição.

Relativamente à primeira dimensão da questão, diremos que concordamos com a posição da Doutrina maioritária, que considera os tribunais administrativos competentes para dirimir conflitos derivados de relações administrativas e todos os que sejam de Direito Privado e envolvam a Administração também. A fundamentação para esta posição é a de que não podemos ignorar que a Administração, por muito que seja colocada ao nível de um particular, tem especificidades na sua actuação que fazem com que deva ser julgada por tribunais cientes desse facto.

Quanto à segunda questão, colocamo-nos ao lado da segunda posição doutrinária, pois em questões administrativas que se prendam com direitos fundamentais, é necessário garantir a máxima protecção possível e essa protecção, na jurisdição administrativa nem sempre é suficiente, como é sabido. Desta forma, admitimos a remissão de determinados litígios administrativos para os tribunais comuns. Esta nossa posição é reforçada por aquilo que a legislação ordinária estabelece, pois a CRP pode ser um pouco equívoca, mas o ETAF e outras leis especiais são mais claros ao estipular que os tribunais administrativos não são os únicos a ter competência em matéria administrativa.


Em conclusão, consideramos que a resposta à primeira dimensão da questão é que os tribunais administrativos podem julgar questões que não surjam de relações administrativas e a resposta à segunda questão é que existem outros tribunais competentes em matéria de Direito Administrativo. A resposta à pergunta principal será, portanto: o artigo 212º, nº3 da CRP não estabelece uma reserva absoluta de jurisdição administrativa, embora assim possa parecer à primeira vista.


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