domingo, 20 de maio de 2012

O Ministério Público no Contenciosos Administrativo


Antes de mais, cumpre delimitar o conceito de modelo processual (operativo) mais marcante de justiça administrativa que está consagrado no nosso sistema e enunciar, de forma sucinta, o que se entende por modelo subjectivista de justiça administrativa e identificar aspectos objectivistas tradicionais.

O modelo predominantemente subjectivista que se pode designar “modelo alemão” surge associado à ideia de uma “ protecção judicial plena e efectiva” dos administrados (Tutela de direitos e de posições jurídicas substantivas individualizadas dos particulares), procurando uma densificação substancial e procedimental da fiscalização judicial da actividade administrativa, designadamente no que respeita à limitação dos poderes discricionários.

Por seu lado, num regime processual de natureza fundamentalmente objectivista vê-se, em primeira linha, a defesa da legalidade e do interesse público, considerando-se o recurso de anulação como “um processo feito a um acto”, destinado em primeira linha a fiscalizar a legalidade do exercício autoritário de poderes administrativos, em que os recorrentes particulares desempenham a função de auxiliares da legalidade, porque (desde que ) interessados no resultado.

Ora, considerando a Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, que aprovou o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais ( ETAF) – alterado pela Lei nº 59/2008, de 11 de Setembro, bem como a Lei nº 15/2002, de 22 de Fevereiro, que aprovou o Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), constata-se que a nova Reforma legal prevê um sentido significativamente subjectivista contudo, a manutenção ou introdução de alguns aspectos objectivistas é também visível.

Assim, entende-se que é o quadro constitucional da justiça administrativa que vem estabelecer garantias dos administrados com a intenção de assegurar uma protecção plena perante a administração dos seus interesses legalmente protegidos.

No actual regime, o âmbito de delimitação da jurisdição administrativa, em termos positivos e negativos encontra-se regulado no ETAF nos seus artigos 1º e 4º, que atribui aos tribunais administrativos, nos termos constitucionais, a competência para administrar a justiça nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas, reflectindo-se tal competência numa ampliação do âmbito tradicional.

Neste contexto, assistiu-se a um aperfeiçoamento das garantias das posições jurídicas substantivas dos cidadãos sendo o motor dessa evolução a norma constitucional do art. 268º da Constituição da República Portuguesa ( C. R. P.).

Também o CPTA no art. 2º, nº1 e nº2 ( art. 2 do C.P.C.) consagrou o princípio da tutela jurisdicional efectiva (a cada direito corresponde uma acção), incluindo a tutela cautelar e, portanto, abandonou-se a tipicidade dos pedidos, elencando-se os diversos conteúdos da pretensões possíveis junto dos tribunais e os correspondentes poderes do juiz.

Destas pretensões destacam-se as que não eram anteriormente admitidas: condenação à prática de acto administrativo devido, a condenação à não emissão de actos administrativos, a intimação para adopção ou abstenção de comportamentos administrativos e a declaração da ilegalidade por omissão de regulamentos, bem como a resolução de litígios entre privados e entre órgãos da mesma pessoa colectiva pública.

Criaram-se duas formas processuais ( meios processuais), a acção administrativa comum( art. 37º do CPTA) e a acção administrativa especial ( art. 46º do CPTA), sendo a acção mais frequente do contencioso administrativo a acção especial visto que sempre que se verifique cumulação de pedidos e um deles siga a forma de processo especial será utilizada a forma de acção especial ( art. 5º do CPTA).

Admite-se com grande amplitude a livre cumulação de pedidos em função da mesma relação jurídica ou da mesma matéria de facto ou de direito (art. 4º, nº 2 e art. 47º do CPTA).

No que respeita à tramitação das acções administrativas especiais, estabeleceram-se regras uniformes ( art. 35º, nº2 e 78º e ss., do CPTA), embora com particularidades relativas à impugnação de actos( art. 59 e ss.,), condenação à prática de actos devidos ( artigos 66º e ss.) e aos processos relativos a normas ( artigos 72º e ss.), para além de se estabelecerem processos principais urgentes, em que se reúnem impugnações e intimações urgentes( artigos 97º e ss.).

Consagra-se o princípio da igualdade de armas entre o recorrente e a Administração no sentido da consagração de um verdadeiro “processo de partes” .

Alarga-se substancialmente a protecção cautelar dos administrados, que abrange quaisquer providências, “ antecipatórias ou conservatórias”, que se mostrem adequadas a assegurar a utilidade da sentença( art. 112º e ss. do CPTA).

Nesta conformidade, a Reforma estabeleceu um modelo subjectivista, consagrando o processo administrativo como um processo de partes e alargando os poderes de cognição e de decisão do juiz perante a administração, no entanto, detectam-se os momentos objectivistas do regime, no que respeita à legitimidade processual activa, designadamente para a impugnação de actos administrativos, seja nos significativos poderes que continuam a reconhecer-se ao M.P. como auxiliar da justiça, em defesa da legalidade, sobretudo no que respeita à impugnação de normas, seja ainda em outros aspectos específicos, como o conhecimento oficioso pelo juiz das ilegalidades do acto administrativo impugnado( art. 95º, nº 2 do CPTA).

Não perdendo de vista o tema em análise, a intervenção do Ministério Público na jurisdição administrativa e fiscal está subordinada ao estabelecido no artigo 219.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e as atribuições que exerce não são mais do que concretizações e especialidades dessa modelação geral de base constitucional, bem como da densificação que da mesma é feita nos artigos 1.º a 6.º do Estatuto do Ministério Público (EMP).

Na realidade, tal como sucede no processo civil, também no processo contencioso administrativo, antes como depois da reforma, são tais poderes exercidos intervindo quer a título principal – quando actua uma legitimidade própria para a defesa de bens e valores colocados à sua tutela ou quando representa o autor ou o réu – quer como parte acessória – quando exerce funções de defesa da independência e da legalidade na função jurisdicional e/ou de assistência.

O novo modelo configura um equilibrio entre, por um lado, o recorte constitucional e estatutário dos poderes de iniciativa e intervenção processuais do Ministério Público, e, por outro, do respectivo enquadramento num sistema de justiça administrativa que se apresenta hoje, no plano constitucional, marcadamente subjectivista – desde logo por ser esta a dimensão que surge constitucionalmente configurada como um imperativo.

De facto, a dimensão subjectivista da justiça administrativa vertida no artigo 268.º da C.R.P., foi a razão invocada para a reconfiguração dos poderes processuais do Ministério Público.

Na verdade, o artigo 85.º do CPTA, veio a alterar profundamente o modelo tradicional de intervenção do Ministério Público nos processos em que não figure como parte, e fê-lo quanto ao conteúdo, ao momento e ao modo de intervenção.

Tão profunda alteração foi ainda facilitada pela polémica gerada pela jurisprudência do Tribunal europeu dos Direitos do Homem no acordão Lobo Machado, em que se concluiu constituir violação do artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem a emissão de parecer escrito pelo M.P. sem que concomitantemente fosse assegurado o direito de resposta por parte do demandante; também, pela jurisprudência entretanto produzida pelo Tribunal Constitucional no acordão n.º 345/99, que julgou inconstitucional a norma do artigo 15.º do LPTA que permitia a intervenção do M.P. nas sessões de julgamento do STA, com fundamento na violação do processo equitativo a que se refere o artigo 20.º, n.º 4, da C.R.P.

Seja qual for o entendimento preconizado sobre os poderes processuais do Ministério Público, nesta como noutras áreas do direito, a reforma operada não podia, obviamente, esvaziar a função de representação em juízo do Estado, por tal ir contra a consagração constitucional dessa competência.

Assim, o CPTA acolheu, por imposição dos artigos 219.º da C.R.P. e artigos 1.º a 6.º do EMP, uma solução de continuidade face ao regime anterior, por continuar a reconhecer-se um papel processual relevante ao M.P. para fiscalização da legalidade (art. 51º do ETAF), sobretudo ao poder geral de iniciativa, mas também, embora limitado à defesa de valores comunitários, ao poder de dar parecer sobre o mérito e o de invocação de novos vícios, apesar de se lhe terem retirado alguns dos seus poderes processuais, limitando a intervenção na fase instrutória e suprimindo a vista final e a participação da sessão de julgamento (artigos 58º, nº2, 62º e 73º, nºs 3 a 5, 77º, 85º, 104º, nº2, 146º, 152º, e 155º, todos do CPTA).

É o exercício da acção pública que justifica o estatuto processual do Ministério Público no processo contencioso administrativo e ser a acção pública para defesa da legalidade objectiva a dimensão mais carismática da intervenção do Ministério Público nesta área funcional.

No âmbito das acções administrativas especiais da iniciativa dos particulares (em que o Ministério Público não é parte formal) o CPTA reequacionou a intervenção processual do Ministério Público na acção impugnatória quanto ao tipo de intervenção
( por requerimento e não por vista), quanto ao conteúdo dessa intervenção (artigo 85.º, n.º(s) 2 a 4 e quanto ao momento em que deverá ser concretizada ( n.º 5).

Ao Ministério Público ( M.P.) e aos titulares de interesse directo na anulação do acto, mantém-se um conceito muito vasto de legitimidade para a impugnação de actos, e até se alarga a pessoas e aos órgãos administrativos, bem como, no âmbito da acção popular, a qualquer cidadão e a titulares de interesses difusos, incluindo as autarquias (artigos 55º, n.º 1, alínea a), 9º, nº 2 e 40º, todos do CPTA).

Pode-se, pois, concluir que o Ministério Público continua a deter no novo contencioso importantes poderes de iniciativa e intervenção processuais para defesa da legalidade, do interesse público e de bens comunitários ou valores socialmente relevantes, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais.




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