quarta-feira, 23 de maio de 2012

A aceitação do acto administrativo – Efeitos


        A questão que se coloca quanto aos efeitos da figura da aceitação do acto administrativo, prevista no artigo 56º do CPTA é sobretudo uma: será que este instituto se cinge meramente à simples preclusão do direito de impugnação? Isso é o que tentarei responder neste breve comentário, tendo em conta quer os efeitos substantivos, quer os efeitos processuais que decorrem da respectiva aceitação.
         No que toca aos efeitos substantivos, cabe desde já de salientar que a aceitação do acto administrativo (lesivo de um direito ou interesse) apenas produz efeitos em relação ao particular que o aceita, ficando excluídas outras pessoas que também tenham interesse neste. Deste modo, fixado fica a perda do direito de impugnação em relação a este, auto vinculando-se posteriormente a não agir em sentido contrário à sua posição inicial. De seguida, deve então proceder em conformidade com o conteúdo do acto de aceitação, sob pena de venire contra factum proprium, violando as expectativas da Administração e de terceiros interessados no acto. Em consequência, esta conjuntura leva que na prática se extinga o correspondente direito subjectivo ou interesse legítimo, com base no respeito do princípio da boa-fé, da protecção da confiança e da segurança jurídica. A verdade, é que podemos ser positivistas e achar excessivo a perda destas posições substantivas do sujeito, já que da própria lei apenas decorre a extinção do direito de impugnação. Todavia, não vejo razão para não se retirarem outros efeitos, nomeadamente o que foi referido precedentemente. Aliás, o próprio legislador não teria andado nada mal se o tivesse feito, esclarecido a natureza da aceitação em análise. Ora, como não o fez, cabe concretizar que devemos ter presente o princípio da proporcionalidade e afirmar que a aceitação deve implicar a restrição da posição jurídica substantiva na medida em que o acto administrativo aceite a prejudique e de modo a que o exercício do direito ou interesse seja contraditório com uma anterior aceitação.
         Urge equitativamente determinar, o momento em que a aceitação produz efeitos. Parece que pela pesquisa executada, a aceitação, produz efeitos desde o início da sua vigência, já que traduz um acolhimento não só dos efeitos que o acto produz no momento da aceitação, mas também com todos os que já produziu e que em condições normais venha a produzir. Se assim não fosse, o que ocorreria é que se estaria a frustrar os valores em cima defendidos, nomeadamente o princípio da boa-fé, ignorando o facto de estes tutelarem a positivação desta figura.
        Questão que ainda se coloca quanto a estes efeitos é de saber se com a aceitação teremos ou não a convalidação do conteúdo do acto administrativo? No fundo, se o vício que afecta o acto inválido é eliminado, de modo a que este possa ficar em conformidade com o Direito. A primeira posição que podemos ter em conta, demonstra que tal pode ocorrer, consolidando-se o acto na ordem jurídica, sendo tratado com válido. Tal orientação, só pode ser aceite quando a aceitação do acto se verifique por parte de todos os interessados, isto é se a sanação do acto tiver eficácia erga ommes. Ora, se tal não ocorrer, o que é provável, há sempre a probabilidade de alguém, nomeadamente o Ministério Público[1] e a Administração, de ainda o vir a impugnar, tornando-se este inválido. O primeiro, porque tem legitimidade processual ao abrigo dos artigos 9º, nº 2 e 62º do CPTA, a segunda porque pode proceder à revogação do acto com fundamento na sua invalidade (141º do CPTA) ou proceder à sua ratificação, reforma ou conversão (artigo 137º do CPTA). Logo é de concluir que é defensável que a aceitação nunca deve implicar uma convalidação, nem quanto ao conteúdo do acto, nem em relação aos seus efeitos e que o grau de estabilização que esta figura confere ao mesmo não é absoluto, mas sim relativo, devido ao facto de poder ser posto em causa. 
         No âmbito dos efeitos processuais, é de referir, sem sombra de dúvidas, a perda do direito de impugnação, já que é este que está expressamente previsto no artigo que consagra esta figura no CPTA. Em relação a esta realidade, é de verificar se a aceitação se pode reconduzir ao pressuposto do interesse em agir. Ao aceitar o acto, parece que o sujeito aceitante não tem qualquer interesse na sua impugnação. Todavia, já vimos que esta figura se reconduz a actos que apresentem um conteúdo favorável e desfavorável, o que demonstra que em relação aos últimos, o sujeito terá sempre necessidade de protecção judicial, havendo sempre um interesse em agir. Assim, não é de aceitar a recondução feita desta figura ao requisito negativo do interesse em agir, posição esta que não é corroborada por Vasco Pereira da Silva, que defende exactamente o contrário. Para além desta hipótese, a aceitação pode ainda ser reconduzida a um requisito negativo de legitimidade, pois esta vem positivada nos preceitos relativos a esta matéria e implica a perda do interesse no recurso. Todavia, o positivismo não deve mais uma vez prevalecer. É preciso ir mais longe e debruçar-nos sobre a essência da figura. Deste modo, esta deve ser considerada como um pressuposto processual autónomo, já que com ela exige-se que o recorrente não se encontre na situação de ter aceitado um acto, pois se o tiver feito já não o poderá impugnar. Aqui pelo que é perceptível, não se defende nem se exige que o recorrente se encontre numa determinada posição (situação de legitimidade, interesse em agir), bem antes pelo contrário.
         Nesta matéria, é ainda preciso responder se todos os meios de tutela que o ordenamento jurídico concedia ao titular aceitante são perdidos? Entende-se que sim e que para além da perda do direito de impugnação, também todos os meios processuais que sejam contraditórios com a aceitação, seguirão o mesmo caminho. A verdade, é que não se pode obter por outros meios o mesmo efeito que resultava da impugnação, sob pena de se estar a subverter a própria lei. Cabe desenvolver.
          A nível gracioso, o artigo 53º, nº 4 do CPA dá-nos a resposta: aquando da aceitação não se pode usar qualquer meio impugnatório, isto é, não se pode impugnar um acto nem pela via da reclamação, nem pela via dos recursos. Já no que diz respeito às garantias contenciosas, esta figura apesar de impedir o uso do meio processual da acção administrativa especial, relativa à impugnação de actos (artigo 46º, nº 2, alínea a) do CPTA, pode se estender aos restantes meios processuais. Como exemplo destaco a acção de condenação à prática do acto devido, a aceitação poderá ser importante nos casos em que haja uma recusa da pretensão do sujeito, o que poderá ocorrer com a prática de um acto expresso de indeferimento, ou então com a prática de um outro acto que não satisfaça a tal pretensão. Já nos casos de omissões administrativas, à partida, parece que não será relevante uma aceitação porque, como verificamos, a aceitação pressupõe a existência de um acto administrativo, o que decorre da expressão prevista no artigo 56º do CPTA, “acto praticado”. Mas, esta posição não pode ser acolhida assim, pois é de admitir a aceitação de actos tácitos, isto é, de condutas omissivas a que a lei atribui um valor jurídico. E quando tal acontece é como se existisse um acto administrativo para todos os efeitos. Por isso, diante de uma situação em que a omissão da actuação se reconduza a um acto tácito, considera-se ser relevante a aceitação.
          Realidade prática que ainda se coloca é a seguinte: se tivermos um acto desfavorável que é aceite por um sujeito, sendo tal acto impugnado por outro que se sente prejudicado, os efeitos de uma eventual sentença de anulação do acto, estendem-se ao sujeito aceitante? Só faz sentido colocar a questão nos casos em que a eficácia da sentença é erga ommes, visto que estando o sujeito aceitante impedido de impugnar o acto não poderia intervir como parte num processo de impugnação do acto aceite, razão pela qual, os efeitos das sentenças inter partes nunca se lhe poderiam aplicar, pelo que a aceitação também não os poderia afastar. Já em relação aos casos de sentenças com eficácia erga ommes, a aceitação não obsta a que tais efeitos incidam sobre o sujeito aceitante. Em primeiro lugar, porque a aceitação apenas impede este sujeito de agir em contrariedade com uma posição inicial. A extensão dos efeitos da sentença nestes casos não se configuraria como um comportamento contrário, porque tal extensão não dependeria de uma manifestação de vontade do sujeito, e como tal não haveria expectativas para tutelar. Em segundo lugar, porque os valores que estão subjacentes à consagração dos efeitos erga ommes que são a defesa da legalidade e a própria utilidade da sentença de anulação do acto, justificam os efeitos de tal anulação também se apliquem ao sujeito aceitante
      Para concluir, a aceitação é assim um acto jurídico, através do qual se revela uma manifestação de concordância com o conteúdo do acto, desde que este seja desfavorável e lesivo dos direitos do sujeito aceitante. Assim, extingue-se na esfera jurídica do sujeito, não só a possibilidade de impugnação do acto, mas igualmente o direito ou interesse lesado, o que contribui, sem sombra de dúvidas, para a estabilização dos efeitos do acto administrativo na ordem jurídica.



[1] Tem uma missão de defesa da legalidade da acção administrativa.


Bibliografia:


  • ALMEIDA, Mário Aroso de, "O Novo Regime dos Tribunais Administrativos", Almedina, 2005.
  • AMARAL, Diogo Freitas do, "Curso de Direito Administrativo", Volume II, Almedina, Coimbra, 2002.
  • ANDRADE, José Carlos Vieira de, "A Justiça Administrativa - Lições", Almedina, 2009.
  • ANDRADE, José Carlos Vieira de, "A Aceitação do Acto Administrativo", Boletim da Faculdade - Volume Comemorativo, Universidade de Coimbra, Coimbra, 2003.
  • LUÍS, Sandra Lopes, "A Aceitação do acto administrativo", 2008, Tese de Mestrado em Ciências Jurídico-Políticas 
  • SILVA, Vasco Pereira da, "O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise", Almedina, 2005.
  • SILVA, Vasco Pereira da, "Em busca do Acto Administrativo Perdido", Almedina, Coimbra, 1996, páginas 458 a 624
 


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