terça-feira, 22 de maio de 2012

O recurso hierárquico (des)necessário


O recurso hierárquico (des)necessário

Esta é uma questão que sendo há muito tempo debatida na nossa doutrina, ganhou especial importância após a revisão constitucional de 1989 e após a reforma do contencioso administrativo.
Irei fazer um breve enquadramento da questão, de modo a proceder em seguida à análise em concreto da mesma.

Anteriormente à revisão constitucional de 1989, exigia-se como pressuposto de impugnação contenciosa a executoriedade e definitividade do acto administrativo, era este o sentido da letra da CRP no seu artigo 269.º, nº2. Assim, se o acto não revestisse estas características, nomeadamente para o que nos importa, a verticalidade, o particular via-se constituído na obrigação de esgotar todas as garantias administrativas, findas quais, poderia então impugnar contenciosamente o acto. Era esta necessidade de esgotamento dos meios internos da administração pública, nos casos referidos, que distinguia a figura do recurso hierárquico necessário do recurso hierárquico facultativo. Assim ensinava Marcello Caetano: “se o acto não for praticado por agente de quem possa recorrer-se para os tribunais, o recurso hierárquico visa alcançar a decisão final de outra autoridade de cujos actos (… )seja permitido por lei recorrer contenciosamente (…) é necessário para se poder transformar o acto do subalterno noutro contenciosamente recorrível (…) se o acto a impugnar é desde logo definitivo e executório (…) o recurso hieráriquico que dele porventura seja interposto é uma simples tentativa de resolução do caso fora dos tribunais (…) trata-se de um recurso hierárquico facultativo”.
Com estas revisões, por um lado constitucional, com a eliminação da referência à necessidade de executoriedade e definitividade do acto, actual artigo 268.º, nº. 4 da CRP e por outro, do contencioso administrativo, com a introdução de vários preceitos, nomeadamente a primeira parte do artigo 58.º, nº. 1 CPTA, que exige apenas a eficácia externa do acto, passando assim a ser inequívoca a desnecessidade de definitividade horizontal do acto. Quanto à definitividade vertical, a que mais importa no contexto deste comentário, a discussão faz-se à volta dos números 4 e 5 do artigo 59.º do CPTA e da questão de se saber se estes representam um marco final na definitividade vertical ou se em alguns casos ela representa ainda um requisito para a impugnabilidade do acto administrativo.

A doutrina diverge.

Já antes da reforma do contencioso administrativo, Vasco Pereira da Silva defendia a inconstitucionalidade da figura do recurso hierárquico necessário. Para este autor, a alteração constitucional de 1989 à letra do actual artigo 168.º, n.º da CRP, implicou a perda da ratio subjacente à previsão por leis ordinárias de situações que impusessem o esgotamento de garantias administrativas para efeitos de impugnação contenciosa de um acto administrativo. Para ele, tais situações são um resquício dos “traumas de infância” infligidos ao contencioso administrativo pelo sistema de administrador - juiz.
Vários são os argumentos apresentados por Vasco Pereira da Silva para fundamentar a inconstitucionalidade deste instituto, os quais cumpre precisar.
Em primeiro lugar, invoca a existência de uma violação do princípio da plenitude da tutela dos direitos dos particulares (art. 268º nº 4 CRP), constituindo uma negação do direito fundamental de recurso contencioso, quando seja recusado por não ter havido impugnação administrativa prévia. Por outro lado, a exigência da utilização da garantia administrativa prévia, sob pena de ser precludido o direito de acesso ao tribunal, constitui uma violação do princípio constitucional da separação entre administração e justiça, tal como consagrado nos art. 114º, 205º e segs, 266º e segs CRP. Refere ainda que o princípio da desconcentração administrativa (art. 267º nº 2 CRP), implica “a imediata recorribilidade dos actos dos subalternos sempre que lesivos, sem prejuízo da lógica do modelo hierárquico da organização administrativa, pois o superior continua a dispor de competência revogatória” (art. 142º do CPA). Por último, invoca o princípio da efectividade da tutela (art. 268º nº 4 CRP), porque o reduzido prazo de 30 dias (art. 168º nº 2) pode levar a que na prática, seja inviável o exercício do direito e consequentemente a uma violação do seu conteúdo essencial.

Para além destes argumentos relativos á constitucionalidade, existem outros argumentos passíveis de invocação contra a manutenção do recurso hierárquico necessário. A grande questão discutida é a de saber se este regime do CPTA, que revoga o instituto do recurso hierárquico necessário, abrange também as leis avulsas ou se revoga só o regime constante do CPA.
Quanto a esta questão, para Vasco Pereira da Silva, estas leis além de caducarem por inconstitucionalidade, elas caducam também por falta de objecto. Quanto ao primeiro argumento, por violação do artigo 268.º, 4 da CRP e do conteúdo essencial do direito fundamental da tutela plena e efectiva dos direitos dos particulares e do princípio da igualdade de tratamento dos particulares perante a Administração e perante a justiça administrativa. E quanto ao segundo fundamento, refere que se o Código de Processo estabelece que o recurso hierárquico necessário já não é um pressuposto processual de impugnação de actos administrativos, isso só pode significar que a exigência do recurso hierárquico em normas avulsas deixa de ter consequências contenciosas, não fazendo portanto sentido continuar a ser exigido, sob pena de termos o que Professor chama de “recurso hierárquico desnecessário necessário”. Defende ainda que o CPTA, ao concretizar o direito fundamental de acesso aos meios contenciosos (art. 268.º, n.º 4, CRP), prevê o princípio de promoção do acesso à justiça (art. 7.º CPTA) e proscreve as diligências inúteis (art. 8.º, n.º 2, CPTA), sendo que a defesa da manutenção de regimes avulsos que impõem o recurso hierárquico como condição de acesso à via contenciosa não é mais do que a defesa da obrigatoriedade de um pressuposto, que pode ser inútil.
O autor ressalva ainda o facto de apesar de “desnecessária”, esta figura ser provida de utilidade. Desde logo, porque acarreta uma vantagem para o particular que o recurso contencioso não tem, a suspensão imediata dos efeitos do acto e ainda a suspensão da contagem dos prazos para interposição de recurso contencioso (questão que vai ser aprofundada noutro comentário), pelo que o particular não se vê prejudicado no seu direito de aceder aos tribunais.


Por outro lado há ainda quem seja a favor da constitucionalidade e da manutenção do recurso hierárquico necessário.
É o caso de Mário Aroso de Almeida, que apesar de admitir que é inquestionável que com a introdução dos n.º 4 e 5 do artigo 59.º CPTA o campo de acção desta figura sofreu um severo golpe e que o código parece preferir a não imposição de barreiras administrativas ao recurso contencioso, a verdade é que considera que se mantém as diversas leis avulsas que estabelecem recursos hierárquicos necessários, pelo que nesses casos concretos será necessário, segundo este autor, recorrer-se administrativamente para efeitos de posterior impugnação contenciosa do acto.
Dentro das várias considerações que o autor faz sobre a figura do recurso hierárquico necessário e da reforma do contencioso, importa salientar os argumentos que fundamentam a sua opinião. O autor defende que as normas avulsas são especiais face ao regime geral, e como tal, a falta de menção expressa pelo CPTA não importa a revogação das mesmas, continuando a vigorar nestes casos a figura do recurso hierárquico necessário. Vasco Pereira da Silva responde no entanto a este argumento, dizendo que a ser a regra geral o recurso hierárquico, então as leis avulsas seriam meramente confirmativas e portanto com a revogação da regra geral, não é necessário referir que todas as outras repetições dessa regra são também revogadas.
Quanto à constitucionalidade desta figura, o autor defende que a revisão constitucional e a redacção do actual artigo 268.º, n.º 4 da CRP, significou a queda do requisito geral da definitividade do acto administrativo, mas que tal circunstância não obsta a que por lei se possam estabelecer tais meios de impugnação administrativa. Acrescenta no entanto, que tal como qualquer outro pressuposto processual, tem de se respeitar o crivo constitucional e os seus princípios, pelo que se terá de, no caso concreto, aferir se “essa imposição envolve um condicionamento excessivo, desproporcionado e por isso, ilegítimo do direito fundamental de acesso à justiça administrativa”. Também quanto ao princípio da desconcentração da administração, imposto pelo n.º 2 do artigo 267.º, diz Mário Aroso de Almeida que haverá lugar a esta figura quando se mostre adequado e conveniente, uma vez que o recurso hierárquico necessário é objecto de uma ponderação específica do legislador sempre que é introduzida e que por isso será congruente com o disposto na CRP, uma vez que esta não exige uma desconcentração total.

Também Vieira de Andrade defende a constitucionalidade do instituto, dizendo que este não constitui uma qualquer obstrução ao acesso ao recurso contencioso, podendo ser comparável a qualquer outro pressuposto processual que se possa impor. Refere ainda que o próprio acto do subalterno acaba ele próprio por ser impugnado, pois fica incorporado no acto do superior. Assim, para o autor, o recurso hierárquico necessário não constitui uma desvantagem, sendo antes uma alternativa para os administrados. Considera-se portanto, que este não constitui um atraso na recomendada celeridade processual, já que o tempo do recurso hierárquico poderá ser recuperado no prazo do recurso contencioso ou servir para compensar as desvantagens da curteza deste, nem tão pouco prejudica o particular, uma vez que a possibilidade de interpor recurso contencioso não fica precludida. Assim, considera que só não será exigível o recurso hierárquico necessário legalmente previsto, quando este não suspenda imediatamente a execução da decisão administrativa, ou ainda quando o prazo para a interposição de recurso hierárquico necessário seja tão curto que importe a constituição de uma restrição injustificada de direitos fundamentais, e que nesse sentido contrarie disposto no artigo 18.º, n.º 2 da CRP.


Na minha opinião e em relação à questão da constitucionalidade desta figura, a admissibilidade de recurso hierárquico necessário é a meu ver inconstitucional. Isto porque contende com a letra do artigo 268.º, nº 4 da CRP: se a CRP não exige a definitividade vertical como pressuposto para impugnação contenciosa de acto administrativo, a lei também não o pode fazer sob pena de restringir esta garantia de acesso aos tribunais que a CRP concede ao particular, até porque parece claro ser essa a intenção do legislador constituinte quando optou por modificar a letra do artigo, aquando da revisão constitucional. Esta solução é também ela sufragada pelo próprio CPTA que, nos seus artigos 51.º e 59.º, n.ºs 4 e 5, CPTA, consagra a regra de que a prévia utilização de vias de impugnação administrativa não é necessária para aceder à via contenciosa.
Como tal, todos os recursos hierárquicos a que se refere o CPA devem ter-se como facultativos, considerando-se revogados os preceitos incompatíveis, nomeadamente o 167.º, 168.º e 170.º do CPA. Por um lado haverá assim concordância com o texto da constituição; não se coloca o problema da restrição de garantias e direitos dos particulares; e por outro lado, esta solução não contende necessariamente com a ideia de economia processual, no sentido de subcarregar os tribunais administrativos, pois mesmo facultativamente, os particulares procurarão primeiro, e na maioria dos casos, a resolução do conflito por via administrativa e não judicial, pois aquela é a solução mais célere, com menos custos, que dispensa patrocínio judiciário, permite a suspensão imediata dos efeitos do acto e da contagem do prazo para interposição do recurso contencioso, obriga à decisão de um órgão administrativo mais qualificado e que permite o controlo de mérito. Não vendo no entanto o particular o seu direito de acesso aos tribunais precludido.
Já quanto à questão da revogação ou não das leis avulsas que prevejam o recurso hierárquico necessário, ponderados os diversos argumentos, parece-me que defender a sua revogação é a a solução mais congruente com toda a argumentação supra, com o regime constitucional e também com o regime do contencioso administrativo.
Isto porque, não é por estar em legislação avulsa que deixa, por um lado, de estar sujeitos ao crivo constitucional e contender com a letra do artigo 268.º, n.º 4 da CRP, e por outro lado, de diminuir as garantias e os direitos dos particulares, nomeadamente no seu direito fundamental da tutela jurisdicional efectiva e de recurso aos meios contenciosos. E nesta perspectiva não se poderia deixar de considerar também os regimes avulsos inconstitucionais.
Numa outra perspectiva, sufraga-se o argumento de Vasco Pereira da Silva, quando afirma que se a ratio legis da exigência do recurso hierárquico necessário era a de permitir o acesso à justiça administrativa e se o CPTA estabelece que essa exigência já não consubstancia um pressuposto processual de impugnação de actos administrativos, tal significa que a obrigatoriedade do recurso hierárquico prevista em legislação avulsa não tem já efeitos contenciosos. Nesse sentido, tais normas caducariam, por falta de objecto.
 Já quanto ao argumento aduzido para justificar a existência de dois regimes de impugnação de actos administrativos, que advoga ter-se revogado a regra dita geral do recurso hierárquico necessário do CPTA, mas não as regras consideradas especiais, não me parece a prima facie de rejeitar. Isto porque apesar de para alguns autores este ser um argumento meramente formal, já que dizem que antes da reforma não havia regras especiais, pois estas eram conformes ao regime considerado geral e por isso eram meramente confirmativas e como tal a revogação da regra geral implica a revogação de todas as normas (criadas pelo legislador antes da reforma que eliminou a necessidade do recurso hierárquico necessário) que prescrevem o mesmo regime jurídico. A verdade é que se o regime do recurso hierárquico necessário era a regra geral, qual era então a necessidade das normas avulsas estipularem a sua aplicação, quando à partida o regime, por ser geral, já lhes seria aplicável? Neste sentido, as normas avulsas não se teriam como revogadas.
                De todo o modo e salvo melhor opinião, elas caducariam como foi referido supra, por inconstitucionalidade e por falta de objecto, sendo que o recurso hierárquico é facultativo em todos os casos.



Bibliografia:
Aroso de Almeida, Mário, Manual de Processo Administrativo, Coimbra, 2010.
Aroso de Almeida, Mário, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2ª edição, Coimbra, 2003.

Pereira da Silva, Vasco, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2.ª edição, Coimbra, 2009.
Pereira da Silva, Vasco, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Almedina, 1996

Vieira de Andrade, José Carlos, A Justiça Administrativa (Lições), 11.ª edição, Coimbra, 2011.
Viera de Andrade, José carlos, Em Defesa do Recurso Hierárquico Necessário – Acórdão n.º 499/96, do Tribunal Constitucional,  in Cadernos de Justiça Administrativa, 1996.





Sem comentários:

Enviar um comentário