quarta-feira, 23 de maio de 2012

A responsabilidade civil da Administração por actos ilegais


A lei 67/2007, de 31 de Dezembro, aprovou o regime da responsabilidade extracontratual do Estado e das demais entidades públicas, tendo revogado o diploma que há mais de 40 anos regulava esta matéria: o DL 48 051, de 21 de Novembro de 1967.

Este novo regime, sem prejuízo do capítulo dedicado às disposições gerais, apresenta uma estrutura tripartida, tendo em conta as funções do Estado: função legislativa, judicial e administrativa, definindo as situações de dano decorrentes do exercício dos referidos poderes, podendo gerar um dever de indemnizar.

Cumpre analisar a responsabilidade no âmbito da função administrativa do Estado, prevista no artigo 7º e segs. da lei 67/2007 (RRCEEP).  

O princípio constitucional da responsabilidade civil do Estado vem previsto no artigo 22º da CRP, que consagra a responsabilidade civil solidária do Estado e das demais entidades públicas pelos danos causados pelos respectivos órgãos, funcionários ou agentes, decorrentes de acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício. Sendo, assim, necessário um diploma que concretizasse este preceito, sendo essa a função do Lei 67/2007, e que o DL 48 051 também já desempenhava.



Cumpre analisar os pressupostos desta responsabilidade civil em relação à administração, começando então pela ilicitude:



O RRCEEP vem, no seu artigo 9º n.º1, exigir a ilicitude subjectiva, na medida em que dispõe que ‘’ Consideram-se ilícitas as acções ou omissões dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres objectivos de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos’’.

Assim, a ilicitude não se basta com a mera ilegalidade, antes pressupõe a violação de um direito subjectivo ou interesse legalmente protegido, ou seja, exige a violação de uma norma que se destine a proteger o interessado de outrem.

Para que haja ilicitude é necessário que a norma violada tenha entre os seus fins o de proteger o interesse do particular, ou seja, tem que ser uma norma de protecção. Só assim poderá haver lesão de uma posição jurídica subjectiva.     

A ilicitude não se basta com a genérica antijuridicidade, uma vez que pressupõe a violação de uma posição jurídica substantiva (direito subjectivo ou interesse legalmente protegido) do particular.

Não é qualquer ilegalidade que determina o surgimento de um acto ilícito gerador de responsabilidade. É necessário para que haja ilicitude a presença de uma ilegalidade ‘’qualificada’’, exigindo-se que as normas ou princípios violados revelem uma intenção normativa de protecção do interesse do particular.

Para determinar as ilegalidades relevantes em matéria de ilicitude, faz-se a distinção entre normas instrumentais (formais) e normas substantivas (materiais). Nas primeiras estão em causa normas que regulam aspectos funcionais, formais e organizacionais do exercício do poder. São, essencialmente, normas sobre a competência e sobre a forma que estão aqui em causa, é o procedimento e modo de formação do acto administrativo em si.

Estas normas instrumentais não fixam a disciplina dos interesses públicos e privados e não incidem directamente sobre o conteúdo dos actos administrativos, mas isso não impede que possam influenciar indirectamente o conteúdo dos actos. Simplesmente não são estas normas que procedem ao acerto de interesses.

Já as normas substantivas conformam o conteúdo dos actos administrativos, identificam o interesse público que deve presidir à actividade administrativa, concretizam-no ao enunciar os pressupostos abstractos da acção e estabelecem as providências a adoptar perante a situação em concreto desse interesse.

Aquilo que é importante determinar é se a violação das normas instrumentais, nomeadamente o vício de competência, forma, procedimento, ou seja, as ilegalidades formais, permitem configurar uma ilicitude.

Relativamente às normas que regulam a competência ou a forma dos actos administrativos, a sua violação não é, à partida, causadora de ilicitude, pois dificilmente estas normas podem ser configuradas como disposições legais que façam uma referência específica a direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares. Só assim não será se se demonstrar que as normas violadas tinham por fim a protecção de direitos e interesses legalmente protegidos.  

Quanto aos actos inválidos por vício do procedimento é maior a probabilidade em configurar um ilícito se tivermos em conta que estas normas respeitantes ao procedimento têm muitas vezes por fim a tutela preventiva de direitos ou interesses legalmente protegidos do interessado, por exemplo o art.º 100º CPA. Só que tal relação de ilegalidade e ilicitude não é automática, é necessário provar esse fim da norma.

Quanto à relação de ilegalidades substantivas e ilicitude, temos que ter presente que, apesar de estas regularem o conteúdo dos actos administrativos, a violação de normas substantivas não consubstancia necessariamente uma ilicitude, pois pode acontecer que o interesse cuja lesão o particular invoca não figure no âmbito de protecção da norma substantiva violada. É necessário que a norma revele uma intenção normativa de protecção de protecção desse interesse, ou seja, tem que haver uma conexão de ilicitude entre a norma ou principio violado e a posição juridicamente do particular.  



Ilicitude da conduta ou do resultado?

                                                                                                

É discutido se estamos perante uma ilicitude da conduta ou do resultado, no sentido em que se se entender que é suficiente a violação de um comando ou de uma proibição, com a consequente lesão de um direito ou interesse legalmente protegido, para desencadear um juízo de reprovação da ordem jurídica, para haver ilicitude basta a verificação do resultado.

A ilicitude da conduta reporta-se a um determinado comportamento, sendo necessário que a conduta esteja em contradição com uma proibição ou imposição da própria norma jurídica no próprio momento da acção e não apenas aquando do resultado lesivo posteriormente verificado.

Podemos atender à ilicitude da conduta, no sentido em que o art.º 9º n.1, refere que são ilícitas as acções ou omissões que infrinjam ‘’regras de ordem técnica ou deveres objectivos de cuidado,’’ o que demonstra uma alusão ao dever de cuidado. No entanto, também encontramos referência no mesmo artigo ao resultado, quando a lei considera ilícitos os actos que violam as normas legais e regulamentares ou os princípios constitucionais.

Assim, cumpre apenas notar que na referência feita pelo artigo 9º n.1, tanto a conduta como o resultado fazem parte do âmbito do pressuposto do facto ilícito, uma vez que este nunca dispensa o resultado lesivo. Para além de que não se pode excluir o resultado no sentido em que o propósito principal da responsabilidade civil é reparar danos e não o sancionar condutas.



A aceitação do acto como exclusão da ilicitude:



A aceitação do acto por parte do interessado não equivale a uma convalidação do acto administrativo, pois o acto administrativo permanece tal qual era antes do assentimento do interessado, estando ainda ao alcance do poder de impugnação por parte de outros interessados.

A aceitação do acto por parte do interessado exprime a adesão deste à disciplina fixada num acto administrativo, na concordância da disciplina desfavorável ao seu interesse material, independentemente da sua conformidade à lei. Assim sendo, o efeito da aceitação é preclusivo, pois esta constitui um facto incompatível com o exercício do poder de impugnar. Se o interessado aceita não faz sentido que depois venha a impugnar o acto, seria contraditório.

Esta aceitação do acto administrativo vai implicar no seio da responsabilidade civil da administração por danos provocados por actos ilegais, uma causa de exclusão da ilicitude.



Quanto ao segundo pressuposto da responsabilidade: Culpa:



A culpa define o nexo existente entre o acto ilícito e a vontade do autor. É o elemento subjectivo da responsabilidade.

Agir com culpa implica reprovação e censura da conduta por parte do direito.

O artigo 10º do RRCEEP estabelece em que termos a culpa é apreciada. Assim sendo, a culpa deve ser apreciada pela ‘’diligência e aptidão que seja razoável exigir’’ e em ‘’função das circunstâncias de cada caso’’, a um agente zeloso e cumpridor.

Nós temos que atender ao caso concreto em si e ainda às qualidades pessoais do agente, devendo apreciar-se a sua diligência no âmbito da sua qualidade de titular de órgão que praticou o acto ilegal causador dos danos.  Para além de que não nos podemos esquecer que a qualidade de titular de um órgão gera expectativas em terceiros de que ele age com a diligência que é suposto e exigível, tendo em conta a sua aptidão para o exercício de funções que desempenha.



A ‘’culpa do serviço’’:



A culpa do serviço é uma ficção jurídica criada e que se recorre nas hipóteses em que não é possível identificar o autor material do acto lesivo.

Estão em causa situações reveladoras de um funcionamento defeituoso dos serviços, seja por mau funcionamento ou por falta deste.

Segundo o artigo 7 º n.º3 do RRCEEP, o Estado e as demais pessoas colectivas públicas continuam a ser responsáveis pelos danos mesmo quando não seja possível provar a autoria pessoal da acção ou omissão. O que significa que a responsabilidade permanece mesmo quando não haja um agente determinado.



Presunções de culpa:



É ao lesado que cumpre a prova da culpa do autor dos danos, uma vez que é elemento constitutivo da responsabilidade que fundamenta o direito à indeminização.

Para facilitar este encargo a lei estabelece presunções de culpa, é o caso do artigo 10º n.º2 e n.º3, em que se presume a existência de culpa leva na prática de actos jurídicos ilícitos e também sempre que tenha havido incumprimento de deveres de vigilância.

Estas presunções liberam o lesado do facto presumido, no entanto elas podem ser afastadas, pois são ilidíveis, não são presunções absolutas, apenas facilitam o lesado de provar a culpa do lesante.

Com a presunção não se elimina o requisito da culpa, mas liberta-se o lesado do ónus da sua prova.

A culpa será sempre dos titulares de órgãos, funcionários e agentes públicos, como estabelece o artigo 10º.



Cont.

A indagação da culpa é referida à violação da lei, à ilicitude do acto ou facto que originou os danos.

Não é suficiente a mera ilegalidade para se poder inferir culpa, e isto porque por um lado, é a ilegalidade substantiva que é relevante para a responsabilização da administração, dado que visam tutelar a posição do lesado e por outro lado, é necessário que as normas violados sejam precisas e inequívocas, que não levantem dúvidas quanto à sua aplicação e interpretação, pois a culpa existe quando as disposições são interpretadas de forma manifestamente errada.



Quanto ao terceiro pressuposto: Dano:



O dano é a lesão a um direito subjectivo ou interesse legalmente protegido que afecta o particular.

É fundamento e limite da obrigação de indemnizar, pois só há indemnização se houver dano, até porque a função de reparação está subjacente á responsabilidade.

O dano deve considerar-se indemnizável quando se incluir no escopo de protecção da norma violada, quer de forma directa, indirecta ou instrumental. Sendo ainda necessário que o dano seja produzido em realização do risco que a norma violada visava prevenir.



Quanto ao nexo de causalidade:



O nexo causal é uma relação entre o acto lesivo e o dano. Os danos resultantes do acto ilícito só serão indemnizáveis se constituírem consequência desse acto.

O acto lesivo é o acto administrativo no seu todo, não a ilegalidade isoladamente considerada, pois é todo o acto que é ilícito, e não apenas alguns dos seus elementos.

O critério que costuma ser utilizado para aferir quais os danos que devem ser reparados é o da causalidade adequada, ou seja, o acto tem que ser causa adequada desse dano.



É obrigatória indemnização quando haja dano e que o facto ilícito tenha causado um prejuízo a outrem, sendo para isso necessário que todos os pressupostos que determinam a aplicação da responsabilidade civil da administração por actos ilegais estejam preenchidos.








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