O
contencioso e o Direito Comunitário: a intimação para protecção dos direitos,
liberdades e garantias – art. 109º CPTA
Segundo
o disposto no art.109º/1 do CPTA, a intimação para a protecção de direitos,
liberdades e garantias pode ser requerida quando “a célere emissão de uma
decisão de mérito que imponha à Administração a adopção de uma conduta positiva
ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil,
de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas
circunstâncias do caso, o decretamento provisório de uma providência cautelar - artigo 131º do
CPTA. Daqui podem, desde logo, retirar-se as condições de admissibilidade desta
intimação, entre elas: a urgência e a indispensabilidade da mesma, bem como, a
impossibilidade ou insuficiência do decretamento provisório de uma providência
cautelar.
Não
cabendo aqui a análise do âmbito objectivo e subjecto de aplicação do artigo em
análise, tentarei abordar o caso especial do recurso à intimação contra a
execução de actos normativos comunitários ou de actos administrativos emitidos
ao seu abrigo.
A crescente penetração do Direito Comunitário derivado nos ordenamentos dos Estados-membros leva-nos a reflectir, em especial, sobre a possibilidade de requerer uma intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias contra actos normativos comunitários. Com efeito, a transformação das Administrações nacionais em estruturas de execução do Direito Comunitário pode gerar situações em que a aplicação de uma norma comunitária, através de actos jurídicos ou materiais, entre em rota de colisão com direitos fundamentais dos particulares.
O problema
que aqui se coloca prende-se com as áreas delicadas do primado do direito
comunitário e da defesa dos direitos fundamentais no âmbito das constituições
nacionais. Importa
dizer, antes de mais, que o que se pretende ao recorrer à intimação na sede do
direito comunitário é impedir a execução de um acto normativo comunitário que
viola, ou pode violar, um direito, liberdade ou garantia. O problema surge
porque, caso a Administração considere que há mesmo essa violação, ver-se-á
obrigada, através da intimação, a comportar-se de forma contrária ao acto
normativo comunitário, o que a leva a ofender a regra de aplicação uniforme do
Direito Comunitário e mesmo o princípio do primado do Direito Comunitário sobre
o Ordenamento Jurídico Nacional. Parece evidente que podemos dizer então que,
tal como os juízes nacionais são juízes comunitários, a Administração
Portuguesa é Administração comunitária, na medida em que actua como tal, de
forma indirecta, na execução administrativa do Direito comunitário.
Uma
solução “fácil” passaria por submeter todas as questões que se suscitassem a reenvio para o Tribunal de
Justiça da União Europeia, para que este se pronunciasse sobre a questão. Aí,
conforme a decisão do TJUE, a Administração daria, ou não, providência à
intimação.
Acontece
que esta solução não se compadece com situações de urgência em que o
denominador comum deverá ser a celeridade. Parece-me então defensável que, não obstante
a incompetência para declarar a invalidade de actos comunitários, face à
gravidade do assunto em causa, e quando não seja possível recorrer em tempo
útil ao mecanismo do reenvio prejudicial, poderá a Administração decidir, por
si só, se deve dar, ou não, providência à intimação quando estejam em causa
actos comunitários. Essa actuação deverá, no entanto, ficar limitada ao
exercício/protecção de certos direitos que pela sua importância o justificam,
tais como, o direito à vida, à integridade física, à identidade pessoal, à
capacidade civil e à cidadania, a não retroactividade da lei criminal, o
direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião
Apesar
de esta solução não derivar de uma interpretação literal do art.109º CPTA, cabe-me
concluir que deve, na minha opinião, poder ser apresentada, na
medida em que as vantagens desta intimação superam as desvantagens que daí
podem advir, encontrando a sua maior justificação na
importância dos Direitos em causa. Não deve, como tal, o Direito
Administrativo ficar sujeito a interpretações literais que ponham em causa uma
protecção adequada dos Direitos dos particulares; tudo deve ser feito em prol
dessa protecção, ainda que, caiba, em cada caso concreto, ponderar a situação
em causa e atender às circunstâncias reais. Não deverá, sem mais, excluir-se o recurso ao
mecanismo do reenvio; isso só se justificará em relação a certos direitos e
quando a situação de urgência assim o imponha, ou seja, para que a solução possa ser admitida terá de existir uma correcta conciliação do princípio da legalidade ao nível interno com o princípio da lealdade ao nível comunitário.
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