A
aceitação do acto administrativo está consagrada nos artigos 56º do CPTA e 53º,
nº 4 do CPA[1]
e traduz a ideia clara que o sujeito que aceita o acto, não o pode impugnar e
fazer-se valer dos recursos que o Direito consagra contra esse mesmo acto. Todavia,
tal conjuntura não é de estranhar? A verdade é que a perda do direito de
impugnação contribui para a permanência na ordem jurídica de actos
administrativos ilegais, quando estes sejam inválidos[2].
Ora tal realidade afecta o princípio da legalidade. Para além disso, a
aceitação também limita o direito à impugnação. Direito, esse, consagrado no
artigo 268º, nº 4 da CRP. Estes fundamentos parecem fazer recusar este
instituto. Mas temos de pensar que quando o legislador vem restringir estes
valores, está certamente a relevar a existência de outros que justifiquem estas
restrições. E o mesmo ocorre nesta matéria, que apresenta princípios que
fundamentam esta aceitação. Assim, podemos salientar claramente o valor geral
da segurança jurídica e o princípio da boa-fé. No que toca ao primeiro,
pretende-se que exista estabilidade dos casos decididos, através dos actos
constitutivos de direitos. A aceitação do acto com efeito preclusivo na ordem
jurídica permite esta estabilidade jurídica. Por outro lado, ainda que muitas
vezes para o sujeito aceitante que vê precludida a possibilidade de tal
destruição, não esteja em causa um acto constitutivo de direitos ou interesses,
este pode sê-lo para terceiros, ou configurar-se mesmo como um garante da
prossecução de certos interesses públicos. Em
relação ao segundo, previsto no artigo 266º, nº 2 da CRP e no artigo 6º A do
CPA, o sujeito que presta a concordância ao conteúdo do acto, não pode agir em
contrariedade com tal declaração, sob pena de se porem em causa as expectativas
e investimentos de confiança que os destinatários, ou terceiros interessados,
tenham feito de tal comportamento. A propósito deste princípio, podemos ainda
referir o princípio da protecção da confiança: quando se pretende impedir que o
sujeito aceitante impugne o acto aceite, se está a atender às expectativas que
outros interessados teriam de que tal acto não seria destruído e que ocorreram
precisamente pela circunstância de tal aceitação. Visa-se igualmente tutelar a
posição da entidade administrativa que praticou o acto. A entidade que o
praticou cria a expectativa de que o particular não vai agir em contrariedade
com tal acto, por isso actua na convicção de que esse terá fortes
probabilidades de não ser posto em causa na ordem jurídica. Através destes
valores, percebe-se quais os fundamentos para a consagração deste instituto no
direito português.
Cabe agora analisar quais os
conceitos principais a ter em conta nesta matéria, assim como perceber quais as
características que os actos administrativos devem ter para que a manifestação
de vontade de aceitar se possa reconduzir a eles. No âmbito da primeira
questão, segue-se em baixo as noções gerais que devemos ter em conta. Assim:
Aceitação
–
A lei não nos apresenta uma noção genérica de aceitação, referindo apenas as
suas principais modalidades e a aceitação tácita. Para o texto em análise, a
aceitação demonstra que há consentimento e aprovação de um determinado acto
administrativo. No fundo, existe uma manifestação clara, uma vontade de
assentimento que o sujeito exterioriza nesse sentido. Desta aceitação, fazem
parte dois elementos:
1
– Manifestação de vontade:
Existe
uma conduta humana com conteúdo activo e não omisso, que traduz uma vontade,
que tem de ser dada a conhecer a alguém, valorada pelo Direito. Todavia, não
quer dizer que essa vontade se manifeste sempre de modo directo (manifestação
expressa). Pelo contrário: a manifestação pode ser tácita.
Aceitação
expressa – Exteriorização do pensamento do sujeito aceitante, que se verifica
por meios directos, ou seja, por meios que permitem captar o seu significado de
forma imediata. E tal ocorre, não só através de mecanismos formais de expressão
da linguagem, como são o uso da escrita, mas também através da voz, palavras e
mesmo por outras figuras, cujo significado decorre de códigos definidos pelos
usos do tráfego. Vontade de aceitar que
é imediatamente perceptível ao exterior.
Aceitação
tácita – Comportamento de um sujeito do qual se deduz indirectamente uma
manifestação de vontade no sentido de acolher um determinado acto
administrativo.
Artigo
56º, nº 2 – Pensada para os particulares, deve ser espontânea e sem reserva.
Para além disso, o artigo demonstra que basta a prática de um facto
incompatível com a vontade de recorrer. Será, no entanto, isso suficiente? A
verdade é que não, sendo necessário que desse facto se possa indeferir uma manifestação
de vontade. Facto, esse, que deve igualmente ser incompatível com a vontade de
recorrer. No fundo, tem de existir uma contradição entre duas atitudes do
sujeito: o comportamento inicial (o facto) e um posterior comportamento de
impugnação são contraditórios, por forma, a que a existência de um exclua a
subsistência do outro.
2
– Concordância com o conteúdo do acto
A
aceitação constitui um verdadeiro acto positivo. Há uma anuência ao acto
praticado pela Administração; uma actuação que revela concordância com o acto
(com a decisão in se), quanto às suas
determinações e fundamentos.
Sujeito
aceitante – Podem ser os particulares, pois são os
principais destinatários dos actos administrativos. Todavia, é de ter em conta
também os funcionários administrativos, como demonstra o artigo 56º, nº 3 do
CPTA[3].
Acto
administrativo – Consagrada a sua noção no artigo 120º do
CPA. Há quem acolha uma concepção restrita, só cabendo neste conceito os actos
reguladores com eficácia externa; e há quem defenda uma concepção mais ampla,
como é o caso de Vasco Pereira da Silva. Neste último caso, podemos considerar
estes actos, como actos da Administração que traduzem uma manifestação
unilateral de vontade ou desejo que visa a produção de efeitos jurídicos de
carácter individual e concreto.
No que toca as características dos actos
administrativos é de salientar que este instituto em análise está pensado
sobretudo para ter como objecto actos inválidos, sendo por excelência
considerados os actos anuláveis. Na verdade, tal ocorre porque a aceitação
pressupõe um acto administrativo que produza efeitos ou pelo menos esteja na
iminência de os produzir. Ora, como sabemos os actos anuláveis, são
obrigatórios até ao momento da sua anulação. Em relação aos actos nulos, que
não produzem nenhum efeito ab initio, será
em princípio de afastar uma eventual aceitação. Todavia, esta conjuntura não
impede que sejam reconhecidos alguns efeitos jurídicos a situações de factos,
geradas por actos nulos, como decorre do artigo 134º, nº 3 do CPA. E só nestes
casos, é de admitir que possa ser relevante uma aceitação do acto
administrativo nulo. No âmbito dos actos inexistentes, não faz sentido
reconduzi-los a esta figura, pois a manifestação de vontade carece de objecto.
A eles faltam elementos estruturais constitutivos que permitem identificar um
tipo legal de acto administrativo não produzindo qualquer efeito ab initio, tal como ocorre com os actos
nulos.
A par destas características, a
aceitação também tem relevância quando estes tenham um conteúdo desfavorável,
pois só desta forma se podem impedir comportamentos contraditórios. Todavia, os
actos não têm de ser desfavoráveis na sua totalidade, podendo ser até mesmo
parcialmente favoráveis. Só que como é óbvio, em relação a estes o particular
não se vai opor. Na verdade, se pensarmos nesta questão na prática, a verdade é
que o particular não vai aceitar um acto com conteúdo totalmente desfavorável.
Logo, a aceitação é relevante quando o acto apresenta um conteúdo misto: é
favorável e desfavorável para o aceitante, sendo os primeiros o motivo de
aceitação.
A par desta realidade é importante
deixar claro uma situação que na prática se mostra bastante pertinente: os
actos não têm de ser efectivamente lesivos. A verdade, é que basta que se
verifique a eminencia da sua lesão, ou seja, que os actos sejam potencialmente
prejudicais, mesmo que ainda não o sejam no momento em que foram aceites. Pelo
contrário e pelo exposto, é evidente que a aceitação de actos favoráveis, na
sua totalidade não deve ser uma hipótese a configurar. Contudo, não é de
afastar a possibilidade (embora remota), de contradição em momento posterior de
actos inicialmente com aspectos favoráveis, que mais tarde se revele
desfavoráveis. Nestes casos, em que ocorre alteração das circunstâncias, cessa
o motivo que deu origem à aceitação dos aspectos desfavoráveis do acto, pelo
que a aceitação extingue-se, tendo o sujeito aceitante a possibilidade de
impugnação de tal acto administrativo. Para terminar, cabe salientar que a este
respeito, Vasco Pereira da Silva, considera que alteradas as circunstâncias em
que se deu a aceitação, o particular pode revogar tal declaração e impugnar o
acto aceite, desde que ainda se encontrem a correr os prazos de impugnação, uma
vez que, outra solução seria inconstitucional por violação do direito
fundamental de acesso ao juiz administrativo, do artigo 268º, nº 4 da CRP[4].
[1] Tem também consagração no artigo
160º do CPA, que remete para o artigo 53º, nº 4.
[2] Contudo, esta realidade não
impede que outros sujeitos interessados no acto administrativo, nomeadamente o
Ministério Público, possam dele recorrer, possibilitando deste modo a sua
invalidação.
[3] “A execução ou acatamento por
funcionário ou agente não se considera aceitação tácita do acto executado ou
acatado, salvo quando dependa da vontade daqueles a escolha da oportunidade de
execução”.
[4] SILVA, Vasco Pereira. O Contencioso no Divã da Psicanálise,
Coimbra, 2005, página 344.
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