Reforma da justiça
cautelar administrativa – Parte II
- Plenitude
A ideia de plenitude traduz-se numa autonomia formal do sistema criado
pelo CPTA relativamente ao Direito Processual Civil.
Antes da reforma só as providências cautelares do CPC, aplicáveis com as
necessárias adaptações ao processo administrativo, ajudavam a combater a
solidão da suspensão jurisdicional da eficácia, impotente para fazer face ao
desdobramento das formas de actuação administrativa para além do acto
administrativo.
O art. 112º/2 CPTA apresenta um elenco exemplificativo de providências
cautelares que revela a ideia de plenitude.
As providências cíveis e administrativas concorrem entre si,
subordinando-se a escolha do julgador ao critério da adequação. Assim, o juíz
administrativo tem à sua disposição uma profusão de medidas potencialmente
aptas a proporcionar tutela cautelar para as mais variadas situações. A existir
qualquer tipo de subsidiariedade entre providências do CPC e do contencioso
administrativo ela ocorrerá dentro da lógica de um sistema aberto, norteando-se
apenas pelo critério de maior adequação, que, naturalmente, tende a
corresponder a melhor tutela (subsidiariedade material – art. 20º CRP)
A plenitude,
enquanto característica do CPTA, manifesta-se quanto às modalidades de tutela
como multifuncional[2] revelando-se
através do sistema cautelar, nas seguintes formas de actuação administrativa:
acto, regulamento, contrato, operação material e actuação informal,
designadamente avisos ao público.
Com a possibilidade
de suspensão do processo principal – artigo 144º/1/c) do CPTA – atribui-se ao
juiz uma maior abertura na sua concessão - artigo 120º/1/a) CPTA – no que se
refere às restantes formas de actuação, havendo alterações verdadeiramente radicais.
Uma das
grandes alterações do CPTA prende-se com o facto de este permitir a
possibilidade de se pedir a suspensão da eficácia de normas que já tenham sido
revogadas, nas seguintes situações concretas: com fundamento na ilegalidade, no
âmbito de um processo, actual ou futuro (de declaração da sua ilegalidade com
força obrigatória geral - artigo 130º/2 e 3 do CPTA), sendo também admissível
que um destinatário, actual ou potencial, de uma norma alegadamente ilegal e de
efeito imediato lesivo dos seus direitos, requeira ao Tribunal a sua suspensão,
com efeitos restritos ao seu caso (artigo 130º/1). Neste âmbito, a regulação do
CTPA veio, de facto, fazer uma absoluta diferença.
Quanto ao
contrato administrativo – artigos 100º a 103º do CPTA - a previsão expressa de
providências cautelares relativamente à formação de contractos, veio a
revelar-se uma das outras novidades do CPTA.
Outra grande
inovação desta reforma aponta para a protecção cautelar contra as actuações e
omissões materiais administrativas ilegais. A articulação com as acções comuns
condenatórias no plano da efectivação da responsabilidade extracontratual administrativa,
na sua obrigação de reconstituição natural e no plano geral, na obrigação de
realização de condutas materiais positivas e na abstenção da prática de actos
materiais ilegais, potencia a utilização de providências cautelares não
especificadas através das quais o juiz conforma, com maior ou menor densidade,
a actividade administrativa.
No plano do
contencioso, além da intimidação para a suspensão da difusão do aviso, importa
sobretudo convencer o julgador da necessidade de emissão de um acto de reposição
da verdade, ou pelo menos de confirmação da incorrecção/falsidade do conteúdo
do aviso.
Na prática,
a intimidação para um comportamento (artigo 122º/2/f) do CPTA), instaurada
contra a entidade administrativa (ou contra qualquer entidade de direito
privado que colabore com a Administração, no exercício das funções de tutela),
decretada provisoriamente ou não (artigo 131º/1 do CPTA), abrangendo ambas as
vertentes da tutela cautelar, parece a providência mais ajustada a resolver certo
tipo de situações. Resta saber se a necessidade de antecipação do juízo não
reconduzirá algumas destas situações à figura da intimidação para a protecção
de direitos, liberdades e garantias, sediada no artigo 109º CPTA, afastando-nos
do domínio estrito das providências cautelares.
Há uma
lógica de numerus apertus de
providências cautelares disposta do CPTA, de flexibilidade das modalidades de
tutela e de vocação abrangente relativamente às formas de actuação
administrativa tem, contudo, uma contrapartida, a complexidade, a segunda
característica que se irá abordar.
- Complexidade
Tentando qua
haja uma correspondência a critérios de ponderação da necessidade, adequação e
equilíbrio das providências cujo decretamento se requer, o artigo 120º/1 CPTA
apresenta três situações:
1. Quando se
trate de providências dirigidas contra actos manifestamente ilegais, por si ou
por referência a actos idênticos já anteriormente anulados, declarados nulos ou
inexistentes e contra actos de aplicação de normas já anuladas – alínea a). O
decretamento quase automático baseia-se num critério de evidência que incorpora
também a salvaguarda do interesse público e a tutela de interesses privados.
Ficam
algumas dúvidas sobre a sua aplicabilidade quanto aos casos de impugnação de
actos e perante regulamentos – a lei parece vedar mas há que considerar o
artigo 130º/4 (há argumentos que reforçam a possibilidade de enquadrar o artigo
120º/1/a) com a providência de suspensão de eficácia de normas regulamentares).
2. Quando
fora das situações alíneas a) se requeira a concessão de providência
conservatória ou antecipatória. O legislador elegeu um critério de apreciação
da necessidade de tutela em função da procedimentalidade da pretensão cautelar.
3. A razão
da distinção quanto aos critérios de ponderação da possibilidade de
decretamento da providência reside na maior responsabilidade do julgador
perante a emissão de uma providência antecipatória – que consumirá, total ou
parcialmente, a decisão final (nestes casos o juiz tem que ter especial atenção
à ponderação a ser feita, necessariamente na forma sumária).
A estes
critérios de verificação da necessidade da providência, acrescem a ponderação
da sua adequação e do seu equilíbrio, nos termos do artigo 120º/2 e 3 do CPTA,
efectivando-se o sistema de protecção cautelar.
O juiz goza,
neste casos, de uma margem de livre decisão, limitada somente à necessidade de
fundamentação da sua decisão – artigo 659º/2 e 668º/1/b) CPC.
Apesar de
alguma doutrina entender que há um verdadeiro “cheque em branco” ou uma
verdadeira inutilização prática deste novo regime, é de constatar que o CPTA,
traz de facto uma nova estrutura de protecção cautelar mais equilibrada – que
na prática não é tão equilibrada como na teoria, tendendo em grande parte para
o interesse público.
Outro ponto
a ter em conta, prende-se com a complexidade na articulação entre providências
cautelares e restantes processos urgentes, nomeadamente, impugnações e
intimidações.
E, por fim,
encontra-se outro novo mecanismo, introduzido pela reforma, de extrema
complexidade e que deve ser utilizado com grande cautela: a
interpenetrabilidade entre processos cautelares e processos sumários, através
da possibilidade de convolação processual disposta pelo artigo 121º do CPTA.
Tal inovação é utilizada quando há manifesta urgência na resolução definitiva
do caso, atendendo à natureza das questões e à gravidade dos interesses
envolvidos, que permite a simples providência cautelar, desde que para tanto,
tenham sido trazidos ao processo todos os elementos necessários para o efeito.
O juiz pode, nestes casos, antecipar o juízo sobre a causa principal – artigo
121º/1 e 120º/1/a) do CPTA – sendo tal decisão passível de recurso – artigo
121º/2.
A
complexidade inerente ao novo sistema de protecção cautelar é inevitável,
sobretudo se o confrontarmos com o regime ainda vigente. Será ainda de
verificar, se tal complexidade se traduzirá em efectiva tutela.
Conclusão:
Estas são
algumas das conclusões que merece o sistema de protecção cautelar a introduzir
pelo CPTA.
Três notas
de risco:
i)O risco da
inundação da jurisdição administrativa por pedidos cautelares 112º/2 do CPTA;
ii) O risco
de sumarização da jurisdição administrativa proporcionado pelo mecanismos do
artigo 121.º/1 do CPTA;
iii) O risco
de subversão dos critérios de ponderação previstos nos nºs 2 e 3 do artigo
120.º do CPTA
O recurso
exaustivo à justiça cautelar apresenta-se manifestamente apelativo perante o
facilitismo no acesso que oferece aos particulares. Contrariamente, o juiz,
perante a espécie de psicose pela urgência que está subentendida nas normas dos
títulos IV e V do CPTA, ver-se-á eventualmente envolvido em “constrangimentos
retroactivos”.
Contudo,
será ele que terá a responsabilidade de refrear, sem extinguir a aspiração à
plenitude da tutela a que a Constituição convoca – artigos 20º/4 e 268º/4),
confirmando a sua tarefa de guardião da legalidade que, por imperativo
constitucional, tem por objectivo a prossecução dos interesses públicos, com
respeito pelos direitos dos particulares – artigo 266º/1 da CRP.
[1] CARLA
AMADO GOMES, “Texto Dispersos de Direito do Contencioso Administrativo”, AAFDL,
p.360
[2] VASCO
PEREIRA DA SILVA “…dentro de cada um dos meios processuais referidos, podem
existir tantas espécies de efeitos das sentenças quantos pedidos susceptíveis
de serem formulados…” do Todo o
contencioso administrativo se tornou de plena jurisdição.
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