Processo Urgentes
– PARTE I
Providências Cautelares
Introdução
O CPTA dedica um
título específico aos “processos urgentes”, integrando diversos processos,
agrupados em categorias de impugnações urgentes e intimações (artigos 97º e
ss.). Neste título são tratados os processos urgentes principais, sendo que o
legislador optou por autonomizar dos processos urgentes não principais.
Com este trabalho
pretende-se analisar o regime de dois tipos de processos urgentes, um principal
(a intimação para protecção dos direitos, liberdades e garantias) e outro não
principal (as providências cautelares), concluindo com a distinção entre ambos.
A tutela
Jurisdicional Efectiva
Como
concretização do direito à protecção judicial (artigo 20º da CRP), a CRP
consagra especificamente no artigo 268º/4 e ss. da CRP, o princípio da tutela
judicial efectiva dos cidadãos perante a Administração Pública.
Este princípio é
reafirmado, no que respeita ao princípio da justiciabilidade ou da
acionabilidade da actividade administrativa lesiva dos particulares, do artigo
2º/2 do CPTA.
Segundo Gomes
Canotilho e Vital Moreira, em anotação ao artigo 17º da CRP, o princípio da
tutela judicial efectiva constitui um direito fundamental análogo aos direitos,
liberdades e garantias, nos termos do citado artigo 17º da CRP.
Nestes termos, o
procedimento cautelar reveste uma especial importância para a salvaguarda da
tutela judicial efectiva, visto que visa precisamente acautelar o efeito útil
de uma futura decisão judicial.
O procedimento cautelar
existe unicamente como uma consagração do princípio da tutela judicial
efectiva, pois em muitos casos se não existir a decretação de uma providência
cautelar o particular não retirará qualquer utilidade da sentença.
A existência de
uma tutela cautelar eficaz é uma obrigação que impede sobre o legislador, sob
pena de se considerar existir uma situação de inconstitucionalidade por
omissão, nos termos do artigo 283º da CRP.
Providências Cautelares
O processo
cautelar é um processo que tem uma finalidade própria: visa assegurar a
utilidade de uma lide principal, isto é, de um processo que normalmente é mais
ou menos longo, porque implica uma cognição plena. Ou seja, visam assegurar a
utilidade da sentença que, a final, venha a ser proferida.
O artigo 112º/1
do CPTA estabelece que será admissível qualquer providência cautelar, desde que
se mostre adequada a assegurar a utilidade da sentença a proferir nesse
processo. O elenco de providências cautelares constante no artigo 112º/2 do
CPTA é meramente exemplificativo.
Nos termos do
referido artigo do CPTA, as providências cautelares poderão ser antecipatórias
ou conservatórias
As providências cautelares antecipatórias serão
aquelas que visam que um certo direito seja conferido provisoriamente, pelo que
constitui uma inovação na ordem jurídica preexistente.
As providências cautelares conservatórias serão
aquelas que se destinam a salvaguardar o status quo existente à data da
interposição do procedimento cautelar, evitando assim que se produza certo efeito
que se considera lesivo.
Características
Instrumentalidade
As providências cautelares são instrumentais em
relação ao processo principal onde são suscitadas, nos termos do artigo 113º do
CPTA.
Isto é, as providências cautelares dependem, não
função e não apenas na estrutura, de uma acção principal, cuja utilidade visa
assegurar.
Isto não impede que o procedimento cautelar seja
apresentado antes do processo principal (artigo 114º/1 al. a) do CPTA), devendo
o processo principal ser apresentado no respectivo prazo, sob pena de
caducidade (artigo 123º do CPTA).
Provisoriedade
As providências cautelares administrativas são
necessariamente provisórias, visto que apenas se destinam a regular uma
situação jurídica até ao proferimento de uma decisão de fundo sobre a questão
controvertida.
A providência cautelar pode também, a todo o tempo,
ser alterada ou revogada pelo juiz, como dispõe o artigo 124º do CPTA.
Sumariedade (“Sumario cognitio”)
Manifesta-se numa cognição sumária da situação de
facto e de direito. Ou seja, com o intuito de evitar a lesão (ou agravamento da
lesão) dos direitos dos administrados, a tutela cautelar administrativa é
caracterizada por uma tramitação simplificada e célere.
A cognição sumária inerente à tutela cautelar
administrativa basta-se com um juízo de mera verosimilhança (ou de
probabilidade), enquanto que a cognição plena, inerente às acções
administrativas principais, exige um juízo de certeza sobre o direito invocado.
Requisitos
da decretação
Indícios suficientes de existência do direito
(“Fumus boni iuris”)
Um dos aspectos mais inovadores da reforma foi o da
consagração da juridicidade material como padrão da decisão nuclear.
Elimina-se um dos corolários mais perversos do
dogma autoritário da “presunção de legalidade do acto administrativo”, quando
se passa a reconhecer e a conferir até relevo fundamental ao fumus boni iuris
(ou aparência do direito).
A principal consequência da sumariedade da tutela
cautelar traduz-se nua atenuação do grau de prova necessário para justificar a
decretação de uma providência. Será assim suficiente a mera justificação ou
demonstração de uma verosimilhança entre os factos alegados pelo requerente e a
verdade fáctica.
O juízo de verosimilhança depende assim da
verificação de indícios suficientes da existência do direito invocado ou, dito
de outra forma, de um fumus boni iuris.
Perigo da demora processual (“Periculum in
mora”)
A doutrina processual-civilista, e o próprio
conceito de providência cautelar, tem evidenciado a necessidade de demonstração
de um perigo de dano jurídico decorrente da demora processual como condição
essencial à decretação de uma providência cautelar.
Encontra consagração legal no artigo 120º/1 al. b)
e c) do CPTA.
O juiz deve, pois, fazer um juízo de prognose,
colocando-se numa condição futura de uma hipotética sentença de provimento,
para concluir se há, ou não, razões para recear que tal sentença venha a ser
inútil, por entretanto se ter consumado uma situação de facto incompatível com
ela, ou por se terem produzido prejuízos de difícil reparação para quem dela
deveria beneficiar, que obstam à reintegração específica da sua esfera
jurídica.
Há porém duas situações em que o juiz cautelar nem
sequer tem de avaliar a existência de periculum in mora. A primeira delas ocorre
sempre que o requerente preste garantia suficiente, no âmbito de uma acção que
vise apreciar o pagamento de quantia certa, sem natureza sancionatória (artigos
50º/2 e 120º/6 CPTA). A segunda verifica-se sempre que seja manifesta a
procedência da pretensão principal formulada (ou a formular). Nestes casos o
legislador basta-se com a demonstração reforçada dos indícios suficientes da
existência do direito para que a providência requerida possa ser judicialmente
decretada.
A proporcionalidade na decisão da concessão
Decisivo é, também, o peso do princípio da
proporcionalidade na decisão de concessão ou de recusa da providência.
Trata-se de uma característica nuclear do novo
sistema de protecção cautelar que implica a ponderação de todos os interesses
em jogo, de forma a que a própria decisão de concessão ou recusa da providência
cautelar dependa dos interesses preponderantes no caso concreto, sempre que ao
seja evidente a procedência ou improcedência da pretensão formulada.
Está em causa a possibilidade de, mesmo que se
verifiquem os dois requisitos fundamentais, o juiz dever recusar a concessão da
providência cautelar, quando o prejuízo resultante para o requerido se mostre
superior ao prejuízo que se pretende evitar com a providência.
A reforma introduziu assim o princípio da
proporcionalidade, na sua vertente estrita de equilíbrio, na decisão sobre a
concessão ou recusa da providência cautelar.
O conteúdo
da decisão cautelar: a necessidade e a adequabilidade da providência decretada
A ideia de proporcionalidade não se manifesta
apenasna decisão de concessão ou recusa da providência cautelar, mas também no
que respeita ao tipo e conteúdo da providência a adoptar.
Esta ideia surge, na vertente de necessidade, desde
logo, no artigo 120º/2 do CPTA, dispondo que as providências se devem limitar
ao necessário para evitar a lesão dos interesses defendidos pelo requerente.
Por isso, e exclusivamente para esse efeito, ao lei
do processo administrativo confere ao tribunal um poder discricionário para,
ouvidas as partes, decretar uma providência que não lhe tenha sido requerida,
em cumulação ou em substituição daquela que foi, quando isso seja adequado para
evitar a lesão do requerente e seja menos gravoso para os demais interesses
públicos ou privados.
As diversas possibilidades existentes de adequação
de conteúdo da providência cautelar, embora não respeitem à decisão em si,
favorecem a sua utilização, na medida em que permitem que o tribunal tome
decisões positivas para os interesses do requerente, por estra em condições de
limitar os prejuízos ou de salvaguardar os interesses da contraparte e dos
contra-interessados.
A
provisoriedade e a temporalidade da decisão e do conteúdo
A providência cautelar constitui, por natureza, uma
regulação provisória de interesses. Daqui se retira que um outro aspecto
marcante destas é o seu carácter provisório e de temporalidade, quer na duração
da decisão, quer do conteúdo, que se manifesta em diversos planos.
A função da providência cautelar é assegurar a utilidade
da decisão proferida em sede do processo principal, ou seja, é provisória
relativamente à decisão principal, na medida em que não a pode substituir e em
que caduca necessariamente com a execução desta.
Também associado ao caracter de provisório da providência,
deve ter-se em conta que a lei prevê responsabilidade civil do requerente, que
tem o dever de indemnizar os danos que eventualmente cause, com dolo ou
negligência grosseira, ao requerido e aos contra-interessados, em especial
quando não haja decisão final de mérito no processo principal favorável ao
requerente.
A urgência e
a sumariedade da cognição
A urgência do processo é exigida pelo periculum in
mora e traduz-se na qualificação legal dos processos cautelares como processos
urgentes, aos quais se aplica o regime geral destes processos, que seguem
designadamente uma tramitação célere, quer em primeira instância, quer em
recurso.
A sumaridade cognitiva está também associada à
urgência. Tendo em conta a necessidade actual de consideração de fumus boni
iuris, a sumaridade manifesta-se na mera exigência de um juízo de probabilidade
ou verosimilhança sobre a existência do direito que se pretende acautelar.
A lei procura atender à diversidade de processos e
gradua a própria urgência, prevendo-se, em geral, um contraditório limitado,
mas admitindo em situações de especial urgência e sobretudo quando esteja em
causa a possibilidade de lesão iminente e irreversível de direitos, liberdades
e garantias, o decretamento provisório imediato da providência requerida ou
outra adequada (com a audição possível do requerido) em 48h, seguindo de
decretamento definitivo, este sim, sujeito a um verdadeiro contraditório.
Embora o CPTA não preveja tal possibilidade, deverá
entender-se como aplicável o 385º/1 do CPC que confere ao juiz o poder-dever de
decretar a providência inaudita parte, quando a audiência puser em sério risco
o fim ou a eficácia da providência. Apesar disto, esta situação só se deve
verificar em situações excepcionais e deverá ser devidamente fundamentada pelo
juiz, relativamente a todos os interessados.
É ainda o carácter sumário do processo cautelar que
justifica a obrigação de o requerente oferecer, na PI, prova sumária dos
fundamentos do pedido, designadamente quanto ao interesse em agir (artigo
114º/2 al. g) do CPTA), bem como a norma que determina a presunção de
veracidade de todos os factos invocados pelo requerente na falta de oposição (artigo
118º/1 do CPTA).
A
instrumentalidade estrutural do processo e a reversibilidade da providência
Os processos cautelares dependem intimamente de uma
causa principal, que tem por objecto a decisão sobre o mérito, o que resulta da
própria definição de providência cautelar (artigo 112º do CPTA), tal como dispõe
o artigo 113º do CPTA.
A instrumentalidade vai manifestar-se em várias
normas (artigos 114º/2/3 al. i) e 116º do CPTA).
A instrumentalidade associada à consequente
provisoriedade, implica também a reversibilidade da providência, isto é, a
proibição de, no processo cautelar se obter um efeito que corresponda ao
provimento antecipado do pedido de mérito em termos irreversíveis, sem prejuízo
do que será dito sobre a admissibilidade da convolação em processo principal.
A
efectividade do processo e da decisão
A providência cautelar pretende assegurar a efectividade,
quer do processo, quer da decisão que conceda a providência cautelar.
Por um lado, essa efectividade consegue-se, na sua
máxima plenitude, quando esteja em causa a suspensão de eficácia de um acto
administrativo ou de uma norma, através de um pré-efeito, determinando-se que
basta o conhecimento pela Administração do pedido de suspensão para que haja
uma proibição automática de execução do acto ou da norma, salvo se o órgão
competente, através de uma resolução fundamentada, “reconhecer” o prejuízo grave
para o interesse público decorrente do diferimento da execução.
Por outro lado, as sentenças proferidas nestes
processos têm as mesmas garantias de execução que as sentenças de mérito, o que
faz com que se preveja a execução forçada e a possibilidade de existência de sanções
pecuniárias compulsórias, bem como de responsabilidade disciplinar, civil e
criminal das autoridades administrativas refractárias.
A convolação
do processo cautelar em processo principal
Uma das grandes novidades da reforma, inspirada na
reforma de direito processual italiano, consiste na possibilidade de convolação
do processo cautelar em processo principal, permitindo-se ao juiz uma antecipação
processual do juízo de fundo caso haja manifesta urgência na resolução
definitiva do caso (artigo 121º do CPTA).
Apesar das condições bem exigentes, e de se
determinar a impugnabilidade da decisão de antecipação, é preciso um especial
cuidado, porque o conhecimento do juiz nesses casos é, por definição e tendo em
conta os requisitos necessários para o decretamento de uma providência
cautelar, sumário.
Tem de existir, por parte do juiz, uma grande
prudência por parte do tribunal e uma interpretação exigente dos pressupostos
legais.
O
decretamento provisório da providência cautelar
O CPTA estabelece a possibilidade do decretamento
provisório da providência cautelar, constituindo um aspecto suplementar do
regime cautelar e valendo para os casos de especial urgência (artigo 131º do
CPTA).
Deve entender-se, com base no princípio da tutela
judicial efectiva, que o juiz, pelo menos quando esteja em causa a lesão iminente
e irreversível de direitos, liberdades e garantias, deve poder decretar provisoriamente
a providência cautelar, mesmo que o decretamento provisório não tenha sido
pedido.
A decisão não está sujeita à aplicação estrita dos
critérios do artigo 120º do CPTA, embora implique o reconhecimento de lesão iminente
e irreversível do direito fundamental ou outra situação de especial urgência e
a decisão pode ser tomada no prazo de 48h.
Bibliografia:
- Carla Amado Gomes, “Textos Dispersos de Direito do Contencioso
Adminstrativo”, AAFDL, 2009, páginas 383 a 428
- Vasco Pereira da Silva, “Novas e Velhas Andanças do Contencioso
Administrativo. Estudos sobre a Reforma do Processo Administrativo, AAFDL,
2005, páginas 353 a 454
- José
Carlos Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa (Lições)”, Almedina, 2011,
páginas 219 a 331
- Eduardo
André Galantes Alves, Tese de mestrado, “Procedimento Cautelar e Tutela
Jurisdicional Efectiva”, FDUL, 2007/08
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