quinta-feira, 26 de abril de 2012

Tutela jurisdicional efectiva



 “Não é suficiente garantia o direito de acesso aos tribunais ou o direito de acção. A tutela através dos tribunais deve ser efectiva.”
                                                                                          Gomes Canotilho e Vital Moreira

 Análise breve do direito à tutela jurisdicional efectiva no contencioso administrativo

          O princípio do direito à tutela jurisdicional efectiva constitui, sem sombras de dúvidas, uma das pedras basilares do Estado moderno, encontrando-se consagrado no artigo 20º e 268º, nº 4 e nº 5 da Constituição da República Portuguesa, assim como no artigo 6º da Convenção para a protecção dos Direitos do Homem e das liberdades fundamentais, ou Convenção Europeia dos Direitos do Homem como é geralmente conhecida, e no artigo 2º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos. Para além disso e sendo claramente o principal instrumento de defesa dos particulares face à Administração, assume igual importância em muitas ordens jurídicas europeias[1].
         No que toca à concretização deste princípio, nada melhor do que começar a sua análise pelos artigos referidos da Lei Fundamental. Com efeito, verificamos que de acordo com o artigo 20º, nº 1, a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, bem como os direitos à informação e consulta jurídica e ao patrocínio judiciário[2]. Deste preceito, resulta que o legislador deve assegurar aos particulares a existência de meios processuais aptos a defender os direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo ignorar tal imposição. Se o fizer, a sua conduta reflecte um caso de inconstitucionalidade por omissão, prevista no disposto do artigo 283º da CRP. A lei deve então assegurar os interesses e direitos legalmente protegidos, podendo, no entanto em última instancia, em caso de lacuna por parte do legislador, essa garantia ser dada pelo tribunal, em decorrência da aplicação directa dos preceitos constitucionais. Tendo em conta tal conjuntura, o núcleo desta garantia é então claramente constituído pelo direito à protecção pela via judicial. Suscita-se então neste âmbito uma questão: este direito implica a reapreciação das decisões judiciais? No fundo, será que existe um duplo grau de jurisdição? A maioria da doutrina e mesmo a jurisprudência tem entendido que não, a não ser se estivermos perante matéria que afecte directamente direitos, liberdades e garantias. Fora destas hipóteses, o recurso não estabelece um bem absoluto, porque apesar de constituir uma garantia decisiva na boa administração da justiça, traduz-se numa demora na realização da mesma, o que não se mostra apropriado.
          Este direito dos particulares traduz-se posteriormente em várias vertentes, sendo uma delas, referente à protecção de direitos e interesses face aos poderes públicos, que encontra consagração no artigo 268º, nº 4 (norma que consagra um direito de natureza análoga a direitos, liberdades e garantias) e nº 5 da CRP[3]. O que estes artigos pretendem é criar regras claras que ditem o acesso dos administrados aos tribunais, sempre que os mesmos sejam lesados nas relações estabelecidas com a Administração. Assim, todas as pretensões deduzidas, desde que fundamentadas no ordenamento jurídico, devem ser analisadas por um órgão estatal independente, através de um processo que possua as garantias necessárias a permitir uma defesa adequada das posições jurídicas do demandante.
         No fundo, aquilo que se pretende com o recurso aos tribunais é salvaguardar a tutela integral de todas as situações jurídicas, mas também permitir que os particulares consigam obter uma solução em tempo útil, o que faz com que ela se repercuta na esfera jurídica individual dos cidadãos de forma proveitosa. Integra como tal este direito, o acesso às medidas cautelares adequadas ou necessárias para acautelar os direitos dos particulares, incluindo o acesso a medidas cautelares atípicas. Se assim não fosse, a verdade é que o fim deste princípio era um mero formalismo constitucional. E isso não é de permitir. Aquilo que é necessário é que este princípio não se encontre limitado pela necessidade de adopção de meios específicos de impugnação nem pela possibilidade de se reagir apenas a determinadas formas de actuação da Administração. Pelo contrário, deve-se sim proceder à institucionalização de acções administrativas a título principal, que permitam aos particulares obter a condenação da Administração em diversas situações. Acções, essas, que podem comportar pedidos declarativos, constitutivos e condenatórios, devendo recorrer-se à aplicação por analogia das normas processuais civis, se tal for necessário[4]. O conteúdo desde direito implica assim a possibilidade de se reagir contra todos e quaisquer actos administrativos, independentemente da sua forma. Quanto à possibilidade de impugnação dos regulamentos administrativos, este princípio também se assume como decisivo. Se não vejamos: Presentemente aquando da elaboração de um regulamento podemos ter como afectados os destinatários directos da norma regulamentar, mas não só. Eventuais terceiros podem igualmente ser lesados pela sua disciplina, ainda que indirectamente. Mas a verdade é que o são e não podemos por isso recusar o seu acesso à justiça administrativa. Também eles têm de ter oportunidade de defender os seus direitos e interesses legalmente protegidos. Aliás, tal conjuntura foi mesmo observada na realização de um caso prático nas aulas da cadeira.
        Tendo em conta o objectivo claro deste direito dos particulares, todos os actos praticados por toda e qualquer entidade dotada de poderes de administração, mesmo que não se trate de um órgão ou agente organicamente integrado na Administração pública estão sujeitos à tutela judicial. Como tal, também o Presidente da República, os órgãos do Tribunal Constitucional e demais Tribunais, podem ver os actos que praticaram em matéria administrativa judicialmente sindicados.

Concretização no Código de Processo nos Tribunais Administrativos

       O Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovado pela Lei nº 15/2002, de 22 de Fevereiro do mesmo ano, foi sem dúvida nenhuma, uma lufada de ar fresco para o contencioso administrativo português, uma vez que este se adequou à exigência constitucional da consagração do Estado de direito democrático. Também no âmbito do direito em análise, esta reforma foi indispensável. Como defende Mário Aroso de Almeida, o propósito do CPTA é assegurar que os tribunais administrativos proporcionem uma tutela jurisdicional efectiva a quem a eles se dirige em busca de protecção[5]. Assim, prevê-se tal conjuntura no artigo 2º, que concretiza materialmente este direito. Também o artigo 37º, nº 2 lhe faz jus. Através destes dois artigos, estabelece-se de forma evidente em que consiste este princípio, de modo a que a jurisprudência não tenha a oportunidade de lhe vir a dar uma interpretação contrária ao espirito que teve por base a sua preparação. Tal receio não é de todo insensato, já que tal realidade já ocorreu em anos passados[6]. Deste modo, o artigo 2º do Código, no seu nº 1 vem estabelecer o conteúdo deste princípio, enquanto o nº 2 procede à elaboração de um elenco a titulo meramente exemplificativo, dos tipos de pretensões que poderão ser deduzidas junto dos Tribunais Administrativos. Sendo então um elenco elucidativo[7], neste momento, podem ser deduzidos todo o tipo de pretensões no âmbito da jurisdição administrativa, que deixa de ter uma jurisdição de poderes limitados, como ocorria antes na LPTA. Deste modo, o particular perante uma actuação administrativa deve olhar para os casos exemplificativos enumerados no artigo e optar por aquele que melhor tutelar os seus direitos e interesses. Todavia, caso entenda que nenhuma pretensão indicada se adequa aquilo que deseja, pode deduzir outra pretensão, respeitando apenas os limites da jurisdição contenciosa administrativa.
        De acordo com a pretensão deduzida determina-se posteriormente o tipo de acção administrativa a seguir. Em termos gerais e de acordo com um princípio pouco simplista, pode-se dizer que quando esteja em causa uma actuação da administração ao abrigo do ius imperii que lhe é característico, haverá de recorrer às acções administrativas especiais consagradas nos artigos 46º e seguintes do CPTA. Pelo contrário, quando estejamos perante relações jurídicas em que as partes se encontram em posição de igualdade, será aplicada a acção administrativa comum. Em relação a esta última, podemos mesmo afirmar que a sua relação com a concretização da tutela jurisdicional efectiva se traduz no facto de se evitar, como antes sucedia, que os tribunais venham decidir que uma determinada pretensão não poderá ser apresentada a juízo, porque carece de uma forma específica para ser accionada.
      Quanto à admissibilidade das pretensões atípicas pode, no entanto, ser suscitada uma questão. O recurso a estas pretensões será sempre admitido ou só pode ter lugar quando as pretensões previstas no artigo 2º e no artigo 37º não tutelem os direitos dos particulares? A este respeito e pela pesquisa efectuada parece que a melhor solução se traduz na denominada tese de alcance médio. O particular pode então recorrer à acção administrativa comum quando inexistir outra pretensão que tutele o seu direito ou quando existindo uma pretensão apta a tutelar o seu direito, esta ainda assim não se traduz na maior tutela que o particular pode vir a obter. Através desta acção, encontra-se previsto um meio processual apto a preencher lacunas de protecção que eventualmente surjam no futuro, cabendo a sua concretização à doutrina e à jurisprudência.
       O último dos planos em que se joga de modo decisivo a efectividade da tutela judicial é o da execução das sentenças. Com a reforma do contencioso administrativo, é pela primeira vez consagrado o poder de os tribunais administrativos adoptarem verdadeiras providências de execução das suas decisões. A execução de sentenças de condenação ao pagamento de quantias em dinheiro passa assim, a poder ter lugar por três vias: A primeira é a de pedir ao tribunal que decrete a compensação do crédito detido sobre a Administração com eventuais dívidas que onerem o exequente para com a mesma pessoas colectiva ou o mesmo ministério; a segunda é a de solicitar que o tribunal proceda ao pagamento da dívida através da emissão de uma ordem de pagamento por conta da dotação que deve ser anualmente inscrita no Orçamento Geral do Estado, à ordem do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, afecta ao pagamento de quantias devidas a título de cumprimento de decisões jurisdicionais e a terceira é subsidiária (para o caso das primeiras não funcionarem), o denominado recurso às disposições que no Código de Processo Civil, regulam os processos de execução para pagamento de quantia certa, para obter a penhora e venda em hasta pública de bens pertencentes à entidade devedora (172º, nº 8 do CPTA). No domínio das execuções para prestação de factos ou de coisas, destaca-se pela sua importância, a introdução  do poder de o tribunal providenciar a concretização material do que foi determinado na sentença, podendo para o efeito recorrer com as adaptações que forem devidas, à aplicação das disposições que no Código de Processo Civil, regulam os processos executivos para entrega de coisa certa e para prestação de facto fungível (artigo 167º, nº 5 do CPTA).
     Como concretização deste princípio de referir ainda o artigo 4º do CPTA e a correspondente possibilidade de acumulação de pedidos tradicionalmente respeitantes a meios processuais diferentes, assim como o artigo 7º. No que toca à primeira realidade, quem pretende impugnar um acto administrativo ou uma norma, pode desde logo deduzir um pedido de indemnização respeitante aos prejuízos derivados da prática de tal acto ou da aprovação da norma, não sendo necessário aguardar pelo trânsito em julgado da decisão respeitante à impugnação para requerer a atribuição da indemnização. Deste modo, um contencioso administrativo baseado na mera anulação ou declaração de nulidade de actos administrativos assumia-se como consagrador de uma tutela insuficiente para assegurar os direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. Já em relação ao artigo 7º, este explicita ainda, que o conteúdo do princípio da tutela efectiva implica o direito a uma justiça material, que se pronuncie sobre o mérito das pretensões formuladas, não se limitando a uma mera apreciação formal do litígio. 
        Em suma, podemos mesmo concluir que todas estas alterações dirigiram-se essencialmente por forma a dar cumprimento ao imperativo constitucional de que os tribunais administrativos deveriam proporcionar uma tutela jurisdicional efectiva a quem tivesse necessidade de a eles recorrer em busca de protecção, procedendo o legislador, para o efeito, a um claro reforço dos poderes dos tribunais administrativos. Note-se neste contexto a faculdade atribuída aos Tribunais Administrativos de aplicar sanções pecuniárias compulsórias à Administração, quando sejam chamados a condenar a mesma, a fim de forçar ao cumprimento dos deveres das decisões judiciais. Deste modo, este princípio constitui, melhor dizendo, um postulador informador de toda a reforma do contencioso administrativo, nos seus vários planos incluindo o da reordenação do mapa judiciário. É assim, de forma evidente, um dos elementos que permite a cada um de nós sentir segurança e confiança no futuro, mas terá de ser, como é manifesto uma tutela efectiva. 




[1] Artigo 24º da Constituição Espanhola; artigos 24º e 113º da Constituição italiana e artigo 19º, nº 4 da Constituição de Bona.
[2] Segundo Vieira de Andrade: A tutela judicial efectiva não se refere apenas aos direitos dos cidadãos, na sequência da previsão constitucional, mas estende-se à protecção do interesse público e dos valores colectivos.
[3] Com a revisão constitucional de 1997, o legislador consagrou no nº 4 deste artigo um elenco meramente indicativo de alguns dos meios contenciosos ao alcance dos particulares, enquanto o nº 5 estabelece a regra da impugnabilidade judicial de normas administrativas com eficácia externa lesivas dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
[4] Posição defendida por Gomes Canotilho, mas que já resultava do disposto do artigo 1º da LPTA.
[5] O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, Coimbra, 2003, pág. 12.
[6] Com a Revisão Constitucional de 1989, o texto constitucional permitiu a interposição de recurso contencioso contra qualquer acto lesivo. Todavia, a jurisprudência veio defender a tese de que, mesmo assim, somente os actos definitivos e executórios seriam lesivos.
[7] João Tiago da Silveira refere: O sistema proposto assenta na unificação de um conjunto de meios processuais actualmente existente em torno de dois grandes blocos e na adopção de novos tipos de pedidos, assente numa enumeração exemplificativa”. In Revista Jurídica da AAFDL, nº 25, Lisboa, 2002, página 452.



Bibliografia:
  • ALMEIDA, Mário Aroso, "Manual de Processo Administrativo", Almedina, 2010.
  • ANDRADE, Vieira de, "A Justiça Administrativa - Lições, Almedina, 2009.
  • MAÇÃS, Maria Fernanda dos Santos, "A suspensão judicial da eficácia dos actos administrativos e a garantia constitucional da tutela judicial efectiva", Coimbra Editora, 1996.
  • SILVA, Vasco Pereira da, "O contencioso administrativo no divã da psicanálise: ensaio sobre as acções no novo processo administrativo", 2º edição, Coimbra, Almedina, 2009.

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