sábado, 14 de abril de 2012

Do art. 77 do CPTA, a Declaração de ilegalidade por omissão - breve estudo


1. Introdução ao tema; Breve nota histórica na Constituição Portuguesa

Com a passagem ao Estado Social, e daí, para o Estado Pós-Social de Direito, o entendimento sobre os fins do Estado e a necessidade de intervenção dos poderes públicos sobre as demais situações da comunidade, surgiram com novas preocupações face ao paradigma liberal, ao ponto de se ter como assente que, a intervenção estadual é regra geral sendo que a abstenção pode culminar na violação da ordem objectiva, pode ser violadora (ainda) de direitos fundamentais.

Quando falamos da intervenção estadual, falamos quer a nível legislativo – em que é imposto ao legislador o dever de legislador, executando a Constituição, em geral, e as suas tarefas fundamentais, em especial -, quer a nível administrativo – devendo a Administração organizar-se de forma a poder satisfazer as devidas necessidades públicas, prestando aos cidadãos os bens e serviços que lhes são devidos, nomeadamente, as prestações sociais necessárias para uma vida condigna, em respeito do princípio da dignidade humana. A Constituição de 1976 não ignorou este problema, já que, quando ao dever de legislar, temos um mecanismo de declaração de inconstitucionalidade por omissão, previsto no art. 283 da Constituição da República Portuguesa (CRP), e o mesmo quanto à Administração, quanto à necessidade de tutelar as situações em que é devida a prática de determinado acto administrativo, cf. art. 268 nº4 in fine da CRP.

                Este mecanismo chamou a atenção do legislador já no seio da Constituição de 1933, ou melhor, na sua redacção originária, nada se previa quanto às omissões regulamentares (tendo o Governo o poder de elaborar decretos, regulamentos e instruções para a execução de leis), sendo que só com a Revisão Constitucional de 1945 (Lei nº 2009), o legislador constituinte abordou o problema no art. 109 da Constituição, impondo, quanto a leis não exequíveis por si mesmas, um prazo supletivo de seis meses para que o Governo elaborasse a concretização necessária, de forma a que esta situação não obstasse à execução das referidas leis.

Voltando à Constituição de 1976. A mesma preocupação se manteve, como se viu, porém, a nível de mecanismos de controlo sobre a omissão por parte da Administração nada de relevante existia. Um mecanismo possível, que fora debatido na doutrina, seria o do art. 115 do Código do Procedimento Administrativo (CPA), em que poderiam os interessados na elaboração desse regulamento, solicitar, fundadamente, a elaboração (e modificação ou revogação) de um instrumento normativo, tendo o órgão competente o dever de informar os interessados do destino das suas pretensões, de forma também ela, fundamentada. Contudo, este dever de informar por parte do órgão competente, não teria consequências a nível de impugnação contenciosa, porque o dever de informar não levava a um dever de regulamentar, salvaguardando a autonomia da Administração neste campo, daí que, como bem refere FREITAS DO AMARAL, “não pode, por natureza, seguir-se a formação de acto tácito de indeferimento por virtude da mera preterição do dever instrumental de patentear os motivos da posição tomada”.

2. O novo artigo 77 do Código do Procedimento Administrativo, no novo Contencioso Administrativo

Com a Reforma 2002/2004 do Contencioso Administrativo, surgiu-nos, de forma tímida, uma disposição normativa que regula o problema da omissão normativa da Administração, o art. 77 do Código do Procedimento Administrativo (CPTA). É de notar que, o tratamento desta matéria, já desde 1945, foi praticamente inexistente. Contudo, a nível doutrinário, cabe referir JOÃO CAUPERS e PAULO OTERO, como dos primeiros autores a tratar desta matéria, que se mostra essencial, até por uma lógica de conformidade ao sistema de contencioso administrativo pensado pela Constituição.

Em 1997, JOÃO CAUPERS, entendia que a omissão regulamentar constituía, per se, uma violação de um dever jurídico de regulamentar, que decorreria, expressa ou implicitamente, da própria norma, sendo que, de forma a tutelar o caso de inércia administrativa (em casos de regulamentos tidos como necessários, não os meramente convenientes), poderiam os tribunais administrativos declarar aquela situação de omissão, devendo impor um comportamento à autoridade administrativa competente de produção do regulamento devido dentro de um prazo razoável para o efeito. Já PAULO OTERO, no âmbito da discussão pública sobre a Reforma do Contencioso Administrativo, defendera a criação de um mecanismo similar ao que temos no art. 283 da CRP, i.e., um mecanismo baseado na fiscalização da inconstitucionalidade por omissão, devendo os tribunais administrativos, dar conhecimento disso à autoridade competente para produzir o regulamento devido. Com o referido art. 77 do CPTA, obtivemos um mecanismo em que, por meio de uma acção administrativa especial, um mecanismo apto a tutelar situações de omissão ilegal por parte da Administração, podendo esse dever de regulamentar estar consagrado de forma expressa, quer esteja consagrada de forma implícita na norma, neste ultimo caso, não exequível por si mesma.

3. Da legitimidade e o conceito de “norma devida”

3.1 Da legitimidade e o direito à emissão de norma

                Ao dever de emissão de regulamentos, tutelado pelo art. 77 do CPTA, e sabendo que o dever poderá ser exigível quer expressa, quer implicitamente, a jurisprudência elegeu três critérios de verificação cumulativa, indispensáveis à identificação das hipóteses em causa:
  • Ausência de normas que sejam exigidas pela lei;
  • Necessidade de regulamentação da lei;
  • Exigibilidade da obrigação regulamentar.
 A existência de uma efectiva situação de ilegalidade por omissão poderá estar ligada com a consagração, neste art. 77 do CPTA de um direito à emissão do regulamento, na medida em que, como refere ANA MONIZ, a emissão de regulamentos não releva apenas quanto à prossecução dos interesses públicos podendo igualmente realizar direitos e interesses individuais, em especial, quando estejam em causa direitos fundamentais, ou seja, podemos ter aqui um mecanismo subjectivo em respeito do constante no art. 268 nº4 da CRP. Cabe atender ao disposto no nº1 do art. 77 do CPTA, que contém uma cláusula ampla de legitimidade, transcrevendo a disposição: "O Ministério Público, as demais pessoas e entidades defensoras dos interesses referidos no n.º 2 do artigo 9.º e quem alegue um prejuízo directamente resultante da situação de omissão podem pedir ao tribunal administrativo competente que aprecie e verifique a existência de situações de ilegalidade por omissão das normas cuja adopção, ao abrigo de disposições de direito administrativo, seja necessária para dar exequibilidade a actos legislativos carentes de regulamentação".  

Contudo, este eventual direito não surgirá com a solicitação à Administração para a emissão da norma devida. Diferente do que sucede nos casos de inércia administrativa, no âmbito da acção de condenação à prática do acto devido (art. 67 nº1 al. a) do CPTA), o pedido do particular não constitui condição bastante para a formação de um direito a um regulamento devido, por dois motivos:
  • O procedimento regulamentar é de iniciativa pública, apesar do constante no art. 115 do CPA;
  • A existência deste eventual direito decorre da lei não exequível por si, quando da mesma resulte que o exercício dos direitos em si contidos depende de concretização normativa.

Quanto no art. 77 do CPTA nos refere que seja necessário que haja “prejuízo directamente resultante da situação de omissão”, para o Supremo Tribunal Administrativo (STA), mostra ser uma questão relevante quanto ao acesso à justiça administrativa. Interpretado à luz do art. 268 nº4 da CRP, a legitimidade do art. 77 do CPTA é estendida a quem possa invocar um interesse individual na emissão de determinada norma, na linha de VASCO PEREIRA DA SILVA e RUI MACHETE, deverá ser estendido a qualquer sujeito “que detenha uma posição jurídica substantiva ou mero interesse de facto, defendo, em qualquer dos casos, tratar-se de um direito subjectivo ou de um interesse que derive directamente da norma, ou que seja por ela reconhecido, e que careça de regulamentação para se tornar exequível”. Em termos práticos, refira-se os acórdãos do STA e do Tribunal Central Administrativo Sul (TCA Sul), P. 819/08 de 11 de Março de 2010 e P. 1738/06 de 15 de Maio de 2008, respectivamente.

Em termos práticos, conhecida em sentença a existência de uma omissão ilegal, pelo nº2 do art. 77 do CPTA, deverá o conteúdo ser dado a conhecer à entidade competente para a elaboração do regulamento devido num prazo não inferior a seis meses. Caberá aprofundar o que se quer dizer com isto (Ponto 4).

4. Da sentença e sua execução

O conteúdo desta sentença é um pouco duvidoso, isto deve-se ao facto, de que por um lado ela, parece possuir apenas uma eficácia declarativa, na medida em que, aparenta apenas dar conhecimento à entidade competente para a elaboração de determinado regulamento que existe uma situação de ilegalidade por omissão, mas, como bem refere VASCO PEREIRA DA SILVA, a mesma sentença possui, também, efeitos cominatórios, isto pelo facto de estabelecer um prazo para a devida produção regulamentar. Atendendo ao que se disse quanto aos primeiros estudos deste mecanismo, nomeadamente, a tese defendida por PAULO OTERO, baseando a figura em estudo, em algo análogo ao mecanismo constante no art. 283 nº2 da CRP, encontramos o porquê do problema em perceber no que se vai traduzir esta sentença pelos tribunais administrativos.

VIEIRA DE ANDRADE, debruçando-se sobre a matéria, e tendo isso em conta, refere que a natureza desta sentença se “parece aproximar mais da natureza de uma sentença meramente declarativa” devido à inspiração na figura constitucional, porém, refere ainda o mesmo autor, o facto de também vir a fixar um prazo, a mesma não pode ser vista apenas como uma recomendação, ter apenas um efeito declarativo, devendo ser por isso uma autentica sentença condenatória. Podemos enquadrar dentro desta linha de pensamento, SÉRVULO CORREIA e PEDRO GONÇALVES, para quem a sentença em causa assume-se como condenatória, vinculando a entidade competente a suprir a omissão dentro do prazo determinado pelo tribunal, vindo a mesma sentença configurar este meio como uma forma de “antecipação injuntiva” do exercício da função administrativa. Já para autores como MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e VASCO PEREIRA DA SILVA, atentando à ambiguidade do nº2 do art. 77 do CPTA, consideram, em especial MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, que o CPTA optou por uma solução intermédia entre conferir ao juiz o poder de condenar a Administração à emissão do regulamento devido e o poder de declaração da omissão, tendo sido constituído pelo legislador uma “pronúncia declarativa de conteúdo impositivo”. Concretizando o pensamento de VASCO PEREIRA DA SILVA, para o autor, nada parece impedir que, reconhecida a existência de um dever de regulamentar, o tribunal impusesse (como faz em relação aos actos administrativos devidos) o mesmo comando à Administração sem que daí sobreviesse qualquer desconformidade com o princípio da separação de poderes, referindo o autor que seria necessário distinguir uma de duas hipóteses: Primus, temos as situações em que existe um efectivo dever de elaboração de um determinado regulamento, apesar de a lei habilitadora permitir um exercício discricionário pela Administração na concretização do conteúdo do regulamento, sendo que aqui, como refere o autor, o juiz condenaria à emissão do regulamento, deixando o conteúdo a cargo do exercício discricionário pela Administração, embora pudesse dar indicações quanto ao modo de exercício dessa mesma discricionariedade; e secundus, temos situações em que existe um dever obrigatório de regulamentação, sendo o conteúdo do mesmo pré-fixado pelo legislador. Sendo aqui nesta segunda situação em que VASCO PEREIRA DA SILVA entende não existir qualquer óbice quanto à condenação na Administração na prática de um regulamento devido, com respeito aos demais princípios constitucionais.

Condenada a Administração no dever de regulamentar, quid iuris se nada for feito nos termos constantes da sentença do tribunal, se a Administração não aprovar a norma omitida? Apesar do “silêncio” da lei quanto a este aspecto, autores como JOÃO CAUPERS, defendiam que (ainda num momento antes da reforma do Contencioso Administrativo), estando a Administração em falta, faria sentido prever uma espécie de sanção pecuniária compulsória. Hoje, atendendo à disposição do art. 77 do CPTA, VASCO PEREIRA DA SILVA, tendo em conta o disposto no art. 3 nº2 do CPTA, vem admitir a aplicação desta sanção pecuniária compulsória à entidade administrativa omissa no seu dever de regulamentar. Ainda o referido autor, na senda de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, entende que até é possível a aplicação de mecanismos constantes no processo executivo de sentença administrativa, já que tal comportamento omisso pode ser, citando MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “qualificada como um acto de desobediência em relação à sentença, em termos de habilitar o beneficiário da mesma a desencadear os mecanismos de execução adequados – i.e., a fixação de um prazo limite, com imposição de uma sanção pecuniária compulsória aos responsáveis pela omissão”, retirando isto dos art. 164 nº4 al. d), 168 e 169 do CPTA.

5. Breve nota quanto às situações de regulamentação inexistente ou deficiente e situação de impossibilidade e modificação objectiva da instância

5.1 Regulamentação inexistente ou deficiente

Como referimos supra, no entendimento de JOÃO CAUPERS, o que importa no âmbito desta acção são os regulamentos necessários para que determinada lei se torne exequível no ordenamento jurídico, daí que, no entendimento do TCA Sul, a existência de uma regulamentação insatisfatória ou deficiente não preenche o conceito de omissão legal. Porém, e como bem refere ANA MONIZ, este entendimento não pode ser geral, devendo operar casuisticamente. Refere a autora, em que casos, v.g., em que o regulamento emitido (por deficiência de redacção, v.g.) não viabiliza a aplicação da lei que, apesar da emanação das normas, se vê impedida de produzir efeitos práticos, aqui, não se solicita ao tribunal que aprecia a conveniência do regulamento, mas que avalie se as normas emanadas correspondem verdadeiramente ao cumprimento do dever de regulamentar consagrado na lei, já que a apreciação da sua conveniência se encontra vedada ao tribunal por respeito ao princípio da separação de poderes.

A isto, não se deve opor a concepção de que o tribunal não condena a Administração a especificar as normas devidas, apenas devendo as preencher o vazio existente, nem mesmo a questão do direito à edição da norma, pois, o que temos aqui, como refere ANA MONIZ, é quando as disposições normativas não satisfazem os requisitos de exequibilidade das normas, tudo se passará como se não tivessem sido emanadas de todo, não ficando preenchido “o vazio normativo, nem cumprido o dever correspectivo ao direito formal à emanação do regulamento”.

5.2 Situação de impossibilidade e modificação objectiva da instância

O que se apraz dizer aquando as situações de revogação de norma habilitante para a elaboração de um regulamento, vindo a cair a fonte do dever de emitir determinada norma? Se nós atendermos à natureza condenatória da sentença, como se discutiu supra, seria ilegal admitir uma condenação na emissão de um regulamento, que perdera a sua base legal. Aliás, como refere o STA (v.g., no Ac. de 23 de Abril de 2008, P. 897/07), nem teríamos sequer a emissão de um regulamento mas sim na elaboração de uma situação reguladora de situação individuais e concretas, perdendo as características da generalidade e abstracção (porém, veja-se a decisão diversa tomada pelo TCA Sul (Ac. de 23 de Outubro de 2008), objecto de recurso (para uniformização de jurisprudência) para o STA (Ac. 18 de Fevereiro de 2010, P. 95/09). Aí, o TCA Sul condenou a Administração a proceder à elaboração do regulamento necessário, que à data do acórdão, o diploma legal habilitante já estaria revogado e substituído por outro). Assim, apesar de se reconhecer estar perante um dever de regulamentar, o tribunal ver-se-á confrontado com a impossibilidade absoluta de ordenar a regulamentação, devendo seguir-se a solução consagrada do art. 45 ex vi art. 49 do CPTA, modificação objectiva da instância, devendo ser antes concedida aos lesados a respectiva indemnização. Contudo, refira-se, que mesmo esta indemnização não é totalmente clara, pois que danos serão indemnizáveis? Os que decorrem da omissão ilegal do regulamento, os danos que resultam da impossibilidade de execução da sentença condenatória, ambos os danos? A questão é controvertida e não caberá tomar partido da mesma no presente estudo.

6. Conclusão

Tentou-se neste breve estudo abordar o essencial do mecanismo da declaração de ilegalidade por omissão no seio do Código do Processo nos Tribunais Administrativos, expondo alguns problemas que se põem quanto ao tema, focando-se apenas no direito interno, se bem que para um melhor estudo do tema, envolve, a meu ver, um olhar sobre o sistema francês quanto à temática. É um tema que no sistema francês é tido como da máxima importância, sendo um elmento fundamental do principio da legalidade, e que, por ausência de uma norma específica que regulasse a matéria das omissões regulamentares, a jurisprudência do Conseil d'Etat teve um papel decisivo no seu desenvolvimento. A título de curiosidade, cabe referir que, a primeira vez que fora reconhecida a obrigação de ediçao de um regulamento no ordenamento francês foi em 1951 no caso "Union des anciens militaires titulaires d'emplois réservés à la S.N.C.F.".

Bibliografia:

  1. AROSO DE ALMEIDA, Mário, "Manual de Processo Administrativo", Almedina, Coimbra, 2010;
  2. MONIZ, Ana Raquel Gonçalves, "Aproximações a um conceito de "norma devida" para efeitos do art. 77 do CPTA" in Cadernos de Justiça Administrativa nº 87 Maio/Junho, 2011;
  3. PEREIRA DA SILVA, Vasco, "O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise", 2ª Edição, Almedina, 2009;
  4. VIEIRA DE ANDRADE, José, "Justiça Administrativa: Lições", 10ª Edição, Almedina,  Coimbra, 2009.

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