quarta-feira, 11 de abril de 2012

PODERES DE PRONÚNCIA DO TRIBUNAL NA ACÇÃO ESPECIAL DE CONDENAÇÃO À PRÁTICA DO ACTO DEVIDO


     A acção de condenação à prática de acto devido pela Administração Pública permite ao particular que requereu a decisão administrativa contestar em juízo pelo facto de não ter havido decisão no prazo legalmente prescrito, por ter sido produzida decisão de indeferimento expresso (enquanto acto negativo deve tramitar o pedido nesta acção especial, ex vi art.51º/4) ou por ter sido recusada a apreciação do requerimento (não se confundindo com a hipótese anterior, em que há recusa expressa do pedido do particular).

     Este tipo de acção especial vem pôr termo à necessidade que presidia à consagração do instituto do indeferimento tácito, que tinha como objectivo primacial possibilitar a impugnação judicial de uma “não-actuação” administrativa, ficcionando-se a tomada de posição pela Administração e consequentemente ficcionando-se a existência de um acto, que seria depois atacado para ser substituído por um outro, que não enfermasse de ilegalidades ou violação de princípios norteadores da actuação administrativa.
     
     Impõe-se nesta sede saber então o que pode o Tribunal abranger com a sua decisão condenatória nesta recente modalidade de acção, que vem ditar igualmente a suplantação do tradicional paradigma do contencioso de mera anulação, consagrando agora o contencioso de plena jurisdição. O que compreende a plena jurisdição e quais os seus limites, mormente no que concerne ao art.71º do CPTA, são as matérias a versar.

     Perante um acto negativo como seja o indeferimento ou a recusa de apreciação, a fim do particular não será discutir em juízo esse acto negativo mas sim fazer valer a sua pretensão nas múltiplas faces da sua realização. Por ser um contencioso de plena jurisdição, o objecto do processo não se reduz à anulação do acto negativo, tendo como complemento essencial a pretensão dirigida à prática do acto devido. Impende sobre o particular o ónus da prova dos elementos constitutivos da pretensão que alega, aos quais a Administração pode opor factores impeditivos ou extintivos, como de resto ocorre na tramitação do Processo Civil.

     Há que distinguir conforme o acto devido pela Administração seja vinculado ou discricionário. Principiando pelo primeiro caso, a doutrina defende a instrumentalidade dos vícios de forma e de procedimento, bastando ao particular invocar o fundamento que subjaz ao dever de decisão e de emissão do acto vinculado, não lhe sendo exigido ou necessário até invocar os vícios. Quando, por seu turno, o acto padecer apenas de vício formal (por exemplo, a falta de fundamentação, legalmente imposta art.124ºCPA) e seja de conteúdo vinculado, a jurisprudência tem vindo a considerar irrazoável condenar a Administração à prática de um acto de conteúdo exactamente igual apenas para suprir essa ilegalidade, por força de princípios de economia processual. Não deverão ser invalidados actos negativos vinculados formal ou procedimentalmente inválidos apenas para que sejam emanados outros com similar conteúdo, apelando ao princípio do aproveitamento dos actos administrativos.
     Diferentemente, quando exista margem de discricionariedade para a Administração, é plausível e razoável que o particular formule o pedido de condenação à prática do acto devido ainda que exclusivamente fundado em ilegalidades formais e procedimentais, com o fim de obter a melhor decisão administrativa possível. Uma vez que a discricionariedade é demarcada de modo ténue da arbitrariedade com recurso às conformações legais relativas à forma dos actos, às regras de procedimento e aos princípios basilares da actuação administrativa, não faria sentido relegar estas limitações essenciais à discricionariedade para o plano da instrumentalidade, nestes casos.  

     Em qualquer dos casos, a pronúncia do tribunal encontra também limitações na sua extensão, que embora não sejam unanimemente entendidas pela doutrina e jurisprudência por comportarem várias interpretações, estão actualmente vertidas no art.71º do CPTA. Antes de mais há que recuperar a querela histórica que impossibilitou durante largos anos a consagração de um contencioso de plena jurisdição, e que se prende com o princípio da separação de poderes. Não pode o tribunal imiscuir-se na tarefa de administrar, porque a este apenas caberá julgar da conformidade da actuação dos poderes públicos com as vinculações legais e de princípio a que se encontram adstritos. Tradicionalmente foi defendida a tese segundo a qual ao poder jurisdicional só era admitido o juízo negativo dos actos administrativos, e tudo quanto o excedesse seria ofensivo à separação de poderes por ditar uma ingerência na esfera discricionária da Administração.

     Actualmente este paradigma encontra-se ultrapassado, e deu lugar ao entendimento de que aos tribunais administrativos cabe apenas a aplicação do direito (art.3º/1 do CPTA), todavia cabe igualmente ao tribunal impor a aplicação plena e ampla das disposições normativas, inclusive conformando a actuação administrativa ao indicar-lhe as vinculações a que se encontra adstrita. O actual CPTA atribui à Administração o poder de definição jurídica primária com a prática do acto administrativo, beneficiando de uma reserva de princípio. O interessado que tenha direito à emissão do acto tem o direito de o requerer junto da Administração, mas em regra não poderá exigir ao tribunal que se substitua sem mais ao órgão administrativo competente para o acto. O particular interessado pode solicitar ao tribunal a imposição à Administração do dever de praticar o acto quando exista este dever e nos moldes em que este for conformado pela lei, estando neste caso perante uma atribuição do poder jurisdicional primacial, que é justamente fazer aplicar (correctamente) o Direito. Não cabe aos tribunais administrativos julgar da conveniência e do mérito da decisão administrativa, mas sim pronunciar-se sobre a aplicação das normas jurídicas na sua plena extensão ao caso sub judice. Em suma, não há lugar no actual contencioso administrativo que visa cumprir a  tutela jurisdicional efectiva perante os poderes públicos à aplicação das limitações tradicionais relativas à demarcação rígida de poderes.
     Uma vez que a Administração está sujeita, na sua actuação, a variados graus de vinculação e discricionariedade é relevante apontar várias situações que podem ter lugar e como devem os tribunais administrativos o que é o acto devido in casu.

     Primordialmente, há que dar como assente que é necessário para que possa haver condenação nestes moldes que a recusa do acto ou da sua prática tenham sido ilegais, por violação de imposição legal de agir. Haverá condenação quando haja vinculação quanto à oportunidade da actuação (por impender sobre a Administração o dever de agir), ou quando haja redução da discricionariedade quanto à oportunidade da actuação (isto é, quando o tribunal entenda que existe o dever de agir e o correspondente direito do interessado em exigir essa actuação, sendo este apuramento determinado casuisticamente). Seguidamente há que precisar que condenar à prática do acto devido não é equivalente a condenar à prática de um acto com conteúdo determinado. É possível condenar a Administração a emitir um acto discricionário, cuja definição do conteúdo não cabe ao poder jurisdicional, desde que exista um efectivo dever de agir. O art.71º/2 do CPTA determina que quando esteja em causa a discricionariedade da Administração, ainda assim, e para alguma doutrina (nomeadamente para Mário Aroso de Almeida) poderá ser possível ao tribunal determinar o conteúdo do acto discricionário quando exista uma redução da discricionariedade a zero, isto é, quando se conclua que há apenas uma solução possível por força das circunstâncias do caso concreto. Existe doutrina que discorda e entende que mesmo nestes casos apenas cabe ao tribunal administrativo explicitar as vinculações legais que no caso concreto apenas permitem uma decisão, sem precisar o sentido da decisão a tomar. A condenação genérica da Administração só pode ter lugar em todo o caso quando o tribunal não disponha dos elementos necessários à indicação das vinculações a que o órgão administrativo se encontra adstrito e quais os limites ao exercício da discricionariedade no caso concreto.

     Quanto aos graus de discricionariedade/vinculatividade, é assente que quando o conteúdo do acto seja vinculado, o tribunal condena à prática do acto devido com determinado conteúdo. Quando haja redução da discricionariedade a zero, a condenação opera nos mesmos moldes para Mário Aroso de Almeida, como já referimos supra. Quando não seja possível condenar num acto com conteúdo determinado, deve seguir-se o art.71º/2 parte final, que inculca o dever do tribunal administrativo “enformar” a actuação administrativa que o deve seguir, clarificando as vinculações aplicáveis ao exercício do poder discricionário. Em último caso, terá lugar uma condenação genérica que imponha a reapreciação administrativa da pretensão do interessado, decidindo novamente sobre a matéria, sem que o tribunal determine sequer as vinculações aplicáveis. Este caso de excepção só pode acontecer quando estejamos perante situações de inércia ou omissão pela Administração dos elementos necessários à identificação das adstrições aplicáveis ou quando a Administração tenha alegado infundadamente a existência de questões prévias para se furtar a apreciar a pretensão, apenas cabendo ao tribunal neste caso decidir que tais questões prévias não se colocam e consequentemente condenar a Administração a pronunciar-se sobre o mérito.

     Há doutrina que equaciona o diferimento tácito como via alternativa a esta acção administrativa especial, rejeitando em última análise esta solução. Embora à primeira vista se afigurasse como preferível, porque estaria superada a falta de acto que pode presidir à fundamentação da acção de condenação à prática de acto devido, coagindo implicitamente a Administração a uma decisão expressa em tempo útil sob pena de a pretensão ser deferida, pode revelar-se pernicioso. Senão vejamos. Ao operar o diferimento tácito, constitui-se na esfera do particular os efeitos típicos do diferimento expresso, permite ao interessado iniciar a actuação dentro da permissão administrativa que não existiu realmente assim que o prazo legar para decidir fosse verificado, o que pode comportar efeitos nefastos mormente em matérias ambientais, em que há uma tendencial irreversibilidade dos efeitos humanamente produzidos. Independentemente disto, produzir-se-iam efeitos constitutivos inderrogáveis e condicionadores da actuação administrativa subsequente relativamente às situações constituídas por esses actos administrativos (caso decidido). Não obstante esta solução seja mais fácil de aceitar em caso de actos vinculados, em presença de actos discricionários esta orientação não faz sentido porquanto nestes casos o acto silente não permitiria pela sua natureza não intencional a ponderação dos interesses em presença que deve presidir à decisão nestes casos. A exigência de acto expresso e escrito consubstancia assim uma garantia para o particular e para a administração. Esta é a posição defendida por Maria Francisca Portocarrero[i]


[i] in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 2008. - p. 443-516; (Studia Iuridica . 92. Ad Honorem ; 3). Também em  Separata de: ARS IUDICANDI: estudos em homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, Vol. 3, 2008

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