A psicose da urgência[1]
A previsão no CPTA dos processos
urgentes surge para dar resposta à cultura da urgência. Mas surge a significar
mais do que isso, surge com o objectivo de obviar ao tempo perdido e a
fortalecer a relação entre o tempo, o juiz, a Administração e os particulares.
“ Tudo indica que o conceito de urgência de transformou na chave do novo
contencioso de urgência previsto no CPTA.”[2]
No Título IV estão sistematizados
os processos rápidos rotulados como urgentes, que têm um âmbito material de
aplicação previamente delimitado pelo legislador, que desembocam em pronúncias
judiciais definitivas e que decidem, portanto, o mérito da causa[3].
O CPTA integra um conceito multiforme
de urgência e distingue bem os conceitos de celeridade, urgência (stricto sensu) e periculum in mora[4].
Estruturalmente o Título IV do
CPTA consagra 2 géneros de processos urgentes autónomos: as impugnações
urgentes e as intimações urgentes. Sendo que, apenas analisarei o segundo e dentro
deste apenas a intimação para a protecção dos direitos, liberdades e garantias[5],
prevista nos artigos 109.º e seguintes.
Qual o âmbito de aplicação deste
preceito? Que direitos e garantias são através de si protegidos? Somente os DLG[6]
pessoais ou também os de participação política; unicamente os previstos no
catálogo ou também os outros de natureza análoga, consagrados fora dele e
somente os clássicos direitos fundamentais ou também os novos ditos de 3ª
geração? Como é que preenchemos o conteúdo legítimo da intimação e os poderes
de controlo do juiz relativamente à tramitação processual, e como apuramos os
pressupostos de admissibilidade ou realizamos a prova?
Começando pelos pressupostos de
admissibilidade, uma leitura atenta do artigo deixa clara a natureza
subsidiária[7] da
intimação. A intimação urgente “pode ser requerida quando a célebre emissão de
uma decisão de mérito (…) se revele indispensável para assegurar o exercício,
em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou
suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento provisório de uma
providência cautelar, segundo o disposto no artigo 131.º.”[8]
A intimação urgente só será
legítima se a decisão cautelar (intimação urgentíssima provisória) se revelar insuficiente
ou impossível para assegurar uma efectiva tutela dos particulares.
Este processo, que finaliza com
uma decisão de fundo tem uma tramitação simplificada, em certos casos muito
ligeira e sumária. No que respeita à produção de prova e à sua valoração, não
se encontram elementos caracterizadores distintivos de sumariedade nas normas
que prevêem este processo e os processos cautelares, sendo que nestes últimos,
de alguma forma, as decisões provisórias justificam a superficialidade.
Quando é que podemos lançar mão
do processo urgente para defesa dos DLG? A intimação urgente definitiva tem
preferência sobre os processos comuns na medida em que mostre possuir a
qualidade de que é absolutamente necessária, ou seja, quando esse meio se
revele adequado ou próprio para resolver definitivamente a questão existente
face a um outro que impede a protecção em tempo útil. Ela tem, ainda,
preferência sobre a tutela urgentíssima provisória (artigo 131.º CPTA) quando
este último se revelar impossível ou insuficiente.
No entanto a dúvida persiste
quanto ao âmbito da subsidiariedade estabelecida na lei. Será que ela existe
perante a avaliação da possibilidade da medida cautelar urgentíssima ou existe
em relação à aferição da impossibilidade de toda a medida cautelar que tenha
natureza provisória, quer seja ou não emitida num momento antecipado do
processo cautelar?[9]
“Para compreender o conceito de subsidiariedade
o que conta é a capacidade ou a incapacidade da medida cautelar para regular
definitivamente uma situação e não a urgência.”[10]
De acordo com a letra da lei,
subjacente à necessidade da intimação urgente definitiva existe uma situação de
urgência, mas para a qual não servem as vias processuais comuns, porque são
lentas de mais, nem presta a medida cautelar urgentíssima - esta não serve
porque se caracteriza pela provisoriedade e deve ser preterida perante o
processo urgente que julgue definitivamente o mérito da causa.
Esta resposta proclama uma nova
solução: Como sabemos que casos reclamam uma tutela definitiva e quais os que
reclamam uma tutela provisória? Que é o mesmo que responder à pergunta sobre
quais os casos em que a intimação cautelar se revela insuficiente ou impossível.
Segundo Isabel Fonseca a resposta
convoca a técnica da antecipação cautelar. Para perceber melhor esta temática servir-me-ei
de alguns exemplos.
Hipóteses do Tipo X
Um estrangeiro dirige-se aos
tribunais administrativos para impugnar e requerer a suspensão da decisão de
expulsão proferida pelo director-geral dos Serviços de Estrangeiros e
Fronteiras. O individuo encontra-se ilegal uma vez que o seu pedido de asilo
ainda não obteve resposta. Foi-lhe determinado um prazo para abandonar o país e
ele solicita que sejam adoptadas medidas a obstar à sua expulsão enquanto o juiz
se não pronunciar pela validade daquela decisão.
Desta vez, imaginemos um
estudante a quem foi negada a candidatura ao ensino superior porque o mesmo não
realizou um exame necessário ao seu ingresso (em virtude de informações várias
e contraditórias por parte dos serviços competente). O aluno vem impugnar a
recusa e pedir que aceitem provisoriamente a sua inscrição e a realização da
prova em falta antes do juiz se pronunciar pela validade da rejeição.
Hipóteses do Tipo Y
A associação para a defesa dos
animais decide promover a realização de uma manifestação no Campo Pequeno. No cumprimento
do dever de aviso prévio a entidade competente proíbe em absoluto a realização
da manifestação por razões de segurança. A associação pretende ver anulada tal
decisão e solicita que as entidades competentes não obstem à realização da
manifestação.
Do outro lado, os adeptos do
Sporting, tendo em vista os festejos pela vitória no campeonato decidem
organizar um festival com actuações de bandas de estilo variado. Tal evento,
autorizado pelas entidades competentes realizar-se-ia num prazo de 15 dias,
durante 2 noites numa praça pública junto à Escola e ao Centro de Saúde. Os
Benfiquistas, muito revoltados, julgam a manifestação ilegal, impugnam a
decisão e pedem ao juiz que tome as medidas necessárias a impedir tal
espectáculo leonino.
O que dizer destes exemplos?
Facilmente percebemos que a tutela efectiva ficaria prejudicada se usassemos
para as hipóteses de Tipo y uma intimação para tutela provisória uma vez que
que ela seria impossivel ou insuficiente para solucionar a questão sob o ponto
de vista técnico-jurídico. A forma como o factor tempo[11]
interfere com o direito que é objecto do processo e de como este só se realiza
se a decisão do juiz for imediata são condições que obrigam à emissão de uma
decisão que não pode ser provisória, porquanto qualquer que seja a decisão
formal que o juiz emita, ao pronunciar-se sobre o pedido cautelar, ele decide
sobre o objecto do processo principal, já que nesses casos, o objecto mediato
dos processos se identifica com referência à situação substancial a acautelar –
esvaziando o conteúdo da decisão principal sem que tenha legitimidade para o
fazer[12].
Para uma melhor compreensão, nas
hipóteses Y só uma decisão de mérito pode constituir remédio jurisdicional:
Para que os Benfiquistas conseguissem uma tutela jurisdicional efectiva o juiz
cautelar teria de impedir a realização do espectáculo leonino caso contrário de
pouco servirá uma sentença que lhes venha a dar razão horas, dias, meses mais
tarde.
No caso do aluno que vê rejeitada
a inscrição no ensino superior trata-se de uma situação que pode ser
provisoriamente regulada. No entanto esta situação pode ser perfeitamente
discutível. Claro está, que uma decisão de mérito que posteriormente declare
válida a rejeição, acabaria por invalidar tudo o que teria sido feito até aí.
Daí que a maioria da doutrina confesse ser desejável, nestas situações, uma
decisão de fundo uma vez que a decisão cautelar favorável dá origem a vantagens
significativas de direito e proveitos de facto, cuja reversibilidade, na
hipótese de o processo principal vir a ter insucesso, será de difícil aceitação
para o requerente, entretanto favorecido.
Há situações claras de urgência
que são propícias a exigir decisões de fundo. De forma generalista, podemos
dizer que a situação de urgência pode manifestar-se pela sua configuração em
função do tempo: situações sujeitas a um período de tempo curto, ou que digam
respeito a direitos que devem ser exercitados num prazo ou em datas fixas – actos
ou comportamentos que devem ser realizados numa data fixa própria ou num
período de tempo determinado, como exames escolares ou uma frequência do ano
lectivo, também situações de caracter pessoal ou familiar em que esteja em
causa a sobrevivência pessoal de alguém.
Em suma, os processos para
intimação, de intimação urgente definitiva, permitem ao juiz, no domínio dos
DLG, decidir legitimamente a questão de fundo de modo definitivo, nos casos em
que as situações concretas de urgência verdadeiramente o mereçam e exijam. Os
pressupostos de admissibilidade da intimação para protecção dos DLG dependem da
consideração da absoluta necessidade de emissão de uma decisão de mérito pelo
facto de uma medida cautelar se revelar, num certo caso, como impossível ou
insuficiente. Mas se a situação poder ser decidia pela via cautelar provisória
esta deve ser escolhida e preferida em detrimento da intimação definitiva. A
intimação urgentíssima provisória (quando determine a possibilidade de lesão
irreversível e iminente de direitos) - artigo 131.º tem primazia sobre o
processo cautelar comum.
Apenas uma análise casuística
permitirá saber quando é que as pronúncias de mérito são necessárias, por
contraste com as insuficientes pronúncias cautelares, visto que estas são
sempre, na sua globalidade, provisórias, quer sejam emitidas com especial
urgência no início do processo cautelar ou não.
[1]
Expressão usado por Vieira de Andrade
[2]
Cfr. Isabel Celeste M. Fonseca, Dos processos urgentes no Contencioso
Administrativo (Função e Estrutura)
[3]
A protecção de situações urgentes é realizada, também, no Título V, através dos
processos cautelares. Ver a este respeito um anterior comentário da minha
autoria “Uma viagem pela tutela cautelar”
[4]
Esteve bem o legislador ao distinguir estes conceitos, pois, o de celeridade
não se identifica em pleno com o de urgência e este não esgota o do periculum in mora. Este conceito
pressupõe, para além do de prevenção e urgência, a consideração do “perigo de
ulterior dano marginal que pode derivar do atraso da sentença definitiva
resultante da inevitável demora do processo principal”, vd. P Calamandrei,
Introduzione allo studio sistemático, pág.18
[5]
Segundo a professora Carla Amado Gomes esta teria sido uma forma adoptada pelo
legislados para se eximir da imposição legiferante que resulta do artigo 20.º,
n.º 5 da CRP, a qual pretende colmatar a recorrentemente denunciada ausência no
ordenamento português de uma acção de amparo: Um amparo atípico.
[6]
Direitos Liberdades e Garantias
[7]
Aquilo que Carla Amado Gomes chama de salvaguarda funcional – “A subsidariedade
face a outros meios, mais idóneos à tutela do direito em jogo, revela a
preocupação do legislador em basear a intimação em pressupostos de necessidade
e adequação objectivamente controláveis pelo julgador e transforma a utilização
da intimação num evento excepcional, prevenindo, a banalização deste tipo de
tutela.” Cfr. Carla Amado Gomes, Intimação por protecção de direitos,
liberdades e garantias, pág 111
[8]
Artigo 109.º do CPTA
[9]
O professor Mário Aroso de Alemeida, no seu Manual de Processo Administrativo
afirma que esta é uma questão complexa e delicada. Cuja resolução estaria
dependente da distinção entre as situações em que as providências cautelares
originam uma situação de irreversibilidade jurídica ou apenas provocam uma
irreversibilidade fáctica. Afirma ser próprio da natureza das providências que
para evitar consequências irreversíveis adoptem providências que podem
comportar consequências difíceis de reverter no plano fáctico. Mas isto não faz
com que se esteja no plano das intimações. O que se impõe é que no momento em
que se vai aplicar o artigo 120.º se ponderem as alternativas de modo a
escolher a solução mais equilibrada atendendo à concreta configuração dos
interesses em presença.
[10]
Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 32
[11]
Para Carla Amado Gomes isto seria o reflexo da salvaguarda circunstancial na
medida em que a componente intrínseca da intimação consiste na urgência da
concessão da intimação para evitar a impossibilitação irreversível do direito.
[12]
A tutela cautelar obedece ao princípio da provisoriedade
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