A lei 67/2007, de 31 de Dezembro,
aprovou o regime da responsabilidade extracontratual do Estado e das demais
entidades públicas, tendo revogado o diploma que há mais de 40 anos regulava
esta matéria: o DL 48 051, de 21 de Novembro de 1967.
Este novo regime, sem prejuízo do capítulo
dedicado às disposições gerais, apresenta uma estrutura tripartida, tendo em
conta as funções do Estado: função legislativa, judicial e administrativa,
definindo as situações de dano decorrentes do exercício dos referidos poderes,
podendo gerar um dever de indemnizar.
Cumpre analisar a responsabilidade no âmbito
da função administrativa do Estado, prevista no artigo 7º e segs. da lei
67/2007 (RRCEEP).
O princípio constitucional da
responsabilidade civil do Estado vem previsto no artigo 22º da CRP, que
consagra a responsabilidade civil solidária do Estado e das demais entidades
públicas pelos danos causados pelos respectivos órgãos, funcionários ou
agentes, decorrentes de acções ou omissões praticadas no exercício das suas
funções e por causa desse exercício. Sendo, assim, necessário um diploma que
concretizasse este preceito, sendo essa a função do Lei 67/2007, e que o DL 48
051 também já desempenhava.
Cumpre analisar os pressupostos desta
responsabilidade civil em relação à administração, começando então pela ilicitude:
O RRCEEP vem, no seu artigo 9º n.º1,
exigir a ilicitude subjectiva, na medida em que dispõe que ‘’ Consideram-se ilícitas
as acções ou omissões dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes que
violem disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam
regras de ordem técnica ou deveres objectivos de cuidado e de que resulte a
ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos’’.
Assim, a ilicitude não se basta com a
mera ilegalidade, antes pressupõe a violação de um direito subjectivo ou
interesse legalmente protegido, ou seja, exige a violação de uma norma que se
destine a proteger o interessado de outrem.
Para que haja ilicitude é necessário que
a norma violada tenha entre os seus fins o de proteger o interesse do
particular, ou seja, tem que ser uma norma de protecção. Só assim poderá haver
lesão de uma posição jurídica subjectiva.
A ilicitude não se basta com a genérica antijuridicidade,
uma vez que pressupõe a violação de uma posição jurídica substantiva (direito
subjectivo ou interesse legalmente protegido) do particular.
Não é qualquer ilegalidade que determina
o surgimento de um acto ilícito gerador de responsabilidade. É necessário para
que haja ilicitude a presença de uma ilegalidade ‘’qualificada’’, exigindo-se
que as normas ou princípios violados revelem uma intenção normativa de
protecção do interesse do particular.
Para determinar as ilegalidades
relevantes em matéria de ilicitude, faz-se a distinção entre normas
instrumentais (formais) e normas substantivas (materiais). Nas primeiras estão
em causa normas que regulam aspectos funcionais, formais e organizacionais do exercício
do poder. São, essencialmente, normas sobre a competência e sobre a forma que
estão aqui em causa, é o procedimento e modo de formação do acto administrativo
em si.
Estas normas instrumentais não fixam a
disciplina dos interesses públicos e privados e não incidem directamente sobre
o conteúdo dos actos administrativos, mas isso não impede que possam
influenciar indirectamente o conteúdo dos actos. Simplesmente não são estas
normas que procedem ao acerto de interesses.
Já as normas substantivas conformam o conteúdo
dos actos administrativos, identificam o interesse público que deve presidir à
actividade administrativa, concretizam-no ao enunciar os pressupostos
abstractos da acção e estabelecem as providências a adoptar perante a situação
em concreto desse interesse.
Aquilo que é importante determinar é se
a violação das normas instrumentais, nomeadamente o vício de competência,
forma, procedimento, ou seja, as ilegalidades formais, permitem configurar uma
ilicitude.
Relativamente às normas que regulam a competência
ou a forma dos actos administrativos, a sua violação não é, à partida, causadora
de ilicitude, pois dificilmente estas normas podem ser configuradas como
disposições legais que façam uma referência específica a direitos e interesses legalmente
protegidos dos particulares. Só assim não será se se demonstrar que as normas
violadas tinham por fim a protecção de direitos e interesses legalmente protegidos.
Quanto aos actos inválidos por vício do
procedimento é maior a probabilidade em configurar um ilícito se tivermos em
conta que estas normas respeitantes ao procedimento têm muitas vezes por fim a
tutela preventiva de direitos ou interesses legalmente protegidos do
interessado, por exemplo o art.º 100º CPA. Só que tal relação de ilegalidade e
ilicitude não é automática, é necessário provar esse fim da norma.
Quanto à relação de ilegalidades substantivas
e ilicitude, temos que ter presente que, apesar de estas regularem o conteúdo dos
actos administrativos, a violação de normas substantivas não consubstancia
necessariamente uma ilicitude, pois pode acontecer que o interesse cuja lesão o
particular invoca não figure no âmbito de protecção da norma substantiva
violada. É necessário que a norma revele uma intenção normativa de protecção de
protecção desse interesse, ou seja, tem que haver uma conexão de ilicitude
entre a norma ou principio violado e a posição juridicamente do particular.
Ilicitude
da conduta ou do resultado?
É discutido se estamos perante uma
ilicitude da conduta ou do resultado, no sentido em que se se entender que é suficiente
a violação de um comando ou de uma proibição, com a consequente lesão de um
direito ou interesse legalmente protegido, para desencadear um juízo de
reprovação da ordem jurídica, para haver ilicitude basta a verificação do
resultado.
A ilicitude da conduta reporta-se a um
determinado comportamento, sendo necessário que a conduta esteja em contradição
com uma proibição ou imposição da própria norma jurídica no próprio momento da
acção e não apenas aquando do resultado lesivo posteriormente verificado.
Podemos atender à ilicitude da conduta,
no sentido em que o art.º 9º n.1, refere que são ilícitas as acções ou omissões
que infrinjam ‘’regras de ordem técnica ou deveres objectivos de cuidado,’’ o
que demonstra uma alusão ao dever de cuidado. No entanto, também encontramos
referência no mesmo artigo ao resultado, quando a lei considera ilícitos os
actos que violam as normas legais e regulamentares ou os princípios constitucionais.
Assim, cumpre apenas notar que na referência
feita pelo artigo 9º n.1, tanto a conduta como o resultado fazem parte do
âmbito do pressuposto do facto ilícito, uma vez que este nunca dispensa o
resultado lesivo. Para além de que não se pode excluir o resultado no sentido
em que o propósito principal da responsabilidade civil é reparar danos e não o
sancionar condutas.
A
aceitação do acto como exclusão da ilicitude:
A aceitação do acto por parte do
interessado não equivale a uma convalidação do acto administrativo, pois o acto
administrativo permanece tal qual era antes do assentimento do interessado,
estando ainda ao alcance do poder de impugnação por parte de outros
interessados.
A aceitação do acto por parte do
interessado exprime a adesão deste à disciplina fixada num acto administrativo,
na concordância da disciplina desfavorável ao seu interesse material,
independentemente da sua conformidade à lei. Assim sendo, o efeito da aceitação
é preclusivo, pois esta constitui um facto incompatível com o exercício do
poder de impugnar. Se o interessado aceita não faz sentido que depois venha a impugnar
o acto, seria contraditório.
Esta aceitação do acto administrativo
vai implicar no seio da responsabilidade civil da administração por danos
provocados por actos ilegais, uma causa de exclusão da ilicitude.
Quanto ao segundo pressuposto da responsabilidade:
Culpa:
A culpa define o nexo existente entre o acto
ilícito e a vontade do autor. É o elemento subjectivo da responsabilidade.
Agir com culpa implica reprovação e
censura da conduta por parte do direito.
O artigo 10º do RRCEEP estabelece em que
termos a culpa é apreciada. Assim sendo, a culpa deve ser apreciada pela ‘’diligência
e aptidão que seja razoável exigir’’ e em ‘’função das circunstâncias de cada
caso’’, a um agente zeloso e cumpridor.
Nós temos que atender ao caso concreto
em si e ainda às qualidades pessoais do agente, devendo apreciar-se a sua diligência
no âmbito da sua qualidade de titular de órgão que praticou o acto ilegal
causador dos danos. Para além de que não
nos podemos esquecer que a qualidade de titular de um órgão gera expectativas
em terceiros de que ele age com a diligência que é suposto e exigível, tendo em
conta a sua aptidão para o exercício de funções que desempenha.
A
‘’culpa do serviço’’:
A culpa do serviço é uma ficção jurídica
criada e que se recorre nas hipóteses em que não é possível identificar o autor
material do acto lesivo.
Estão em causa situações reveladoras de
um funcionamento defeituoso dos serviços, seja por mau funcionamento ou por
falta deste.
Segundo o artigo 7 º n.º3 do RRCEEP, o
Estado e as demais pessoas colectivas públicas continuam a ser responsáveis pelos
danos mesmo quando não seja possível provar a autoria pessoal da acção ou
omissão. O que significa que a responsabilidade permanece mesmo quando não haja
um agente determinado.
Presunções
de culpa:
É ao lesado que cumpre a prova da culpa
do autor dos danos, uma vez que é elemento constitutivo da responsabilidade que
fundamenta o direito à indeminização.
Para facilitar este encargo a lei
estabelece presunções de culpa, é o caso do artigo 10º n.º2 e n.º3, em que se
presume a existência de culpa leva na prática de actos jurídicos ilícitos e também
sempre que tenha havido incumprimento de deveres de vigilância.
Estas presunções liberam o lesado do
facto presumido, no entanto elas podem ser afastadas, pois são ilidíveis, não
são presunções absolutas, apenas facilitam o lesado de provar a culpa do
lesante.
Com a presunção não se elimina o
requisito da culpa, mas liberta-se o lesado do ónus da sua prova.
A culpa será sempre dos titulares de órgãos,
funcionários e agentes públicos, como estabelece o artigo 10º.
Cont.
A indagação da culpa é referida à
violação da lei, à ilicitude do acto ou facto que originou os danos.
Não é suficiente a mera ilegalidade para
se poder inferir culpa, e isto porque por um lado, é a ilegalidade substantiva que
é relevante para a responsabilização da administração, dado que visam tutelar a
posição do lesado e por outro lado, é necessário que as normas violados sejam
precisas e inequívocas, que não levantem dúvidas quanto à sua aplicação e
interpretação, pois a culpa existe quando as disposições são interpretadas de
forma manifestamente errada.
Quanto ao terceiro pressuposto: Dano:
O dano é a lesão a um direito subjectivo
ou interesse legalmente protegido que afecta o particular.
É fundamento e limite da obrigação de
indemnizar, pois só há indemnização se houver dano, até porque a função de
reparação está subjacente á responsabilidade.
O dano deve considerar-se indemnizável
quando se incluir no escopo de protecção da norma violada, quer de forma
directa, indirecta ou instrumental. Sendo ainda necessário que o dano seja
produzido em realização do risco que a norma violada visava prevenir.
Quanto ao nexo de causalidade:
O nexo causal é uma relação entre o acto
lesivo e o dano. Os danos resultantes do acto ilícito só serão indemnizáveis se
constituírem consequência desse acto.
O acto lesivo é o acto administrativo no
seu todo, não a ilegalidade isoladamente considerada, pois é todo o acto que é ilícito,
e não apenas alguns dos seus elementos.
O critério que costuma ser utilizado
para aferir quais os danos que devem ser reparados é o da causalidade adequada,
ou seja, o acto tem que ser causa adequada desse dano.
É obrigatória indemnização quando haja
dano e que o facto ilícito tenha causado um prejuízo a outrem, sendo para isso
necessário que todos os pressupostos que determinam a aplicação da
responsabilidade civil da administração por actos ilegais estejam preenchidos.